Da esquerda para direita: Cleriston Pereira, que morreu na prisão; professora Ângela Maria, que faz hemodiálise três vezes por semana; pastor Jorge Luiz, que precisa de cirurgia urgente; e Antônio Marques da Silva, que faleceu com indícios de depressão profunda| Foto: Arquivo pessoalPorto Velho, RO - Tumores e inflamações desenvolvidas após as prisões, comorbidades agravadas e depressão profunda com inúmeros atentados contra a própria vida. Esse é o quadro geral de saúde de muitos dos cerca de mil presos do 8/1. A situação tem preocupado especialistas e familiares, que temem pela vida dessas pessoas e afirmam que situações enfrentadas por eles no cárcere e durante a liberdade provisória configuram tortura psicológica e negligência. Até agora, quatro pessoas morreram.
“Meu esposo Antônio Marques da Silva, por exemplo, não entrou em nenhum prédio em Brasília, mas ficou 19 dias encarcerado e passou meses cumprindo as medidas cautelares”, relata a dona de casa Simone Leandro da Silva, de Barra do Garças, Mato Grosso. “Ele não aguentava mais tanta pressão e injustiça”.
O homem faleceu dia 29 de outubro, vítima de um acidente durante o trabalho informal que realizava para trazer alimento à família. “Foi trocar duas telhas na casa de um senhor, mas caiu do telhado, bateu a cabeça no piso e faleceu”, lamenta a mulher, ao informar que Antônio era operador de máquinas de terraplanagem, tomava remédio para pressão alta e não estava bem emocionalmente.
“Ele não podia mais se deslocar para outras cidades para fazer seu trabalho, então a preocupação aumentou e a vida se tornou um pesadelo”, diz. “Meu marido sorridente e brincalhão passou a ser uma pessoa triste e calada, e o medo de voltar à prisão o assombrava”. O homem deixou sete filhos, o mais novo de quatro anos.
Antônio Marques da Silva tinha 49 anos e apresentava indícios de depressão profunda. Ele faleceu dia 29 de outubro, deixando sete filhos. Foto: Arquivo pessoal | Arquivo PessoalAssim como ele, o cuidador de idosos Giovanni Carlos dos Santos, de São José dos Campos, também faleceu em um acidente, meses após ficar preso no Complexo Penitenciário da Papuda. "Ele saiu de lá muito abalado emocionalmente, com 20 quilos a menos e sofrendo com problemas de saúde", informa sua companheira Maria Vilani Rodrigues.
Segundo ela, Giovanni estava triste, tossia muito e estava com a quantidade de glóbulos brancos do sangue abaixo do normal. "Tanto que foi agendado para ele fazer uma punção na medula para verificar a possibilidade de anemia ou câncer, mas não deu tempo", relata, ao citar que o homem de 46 anos faleceu em uma queda dia 24 de janeiro deste ano.
"O Giovanni não conseguiu mais trabalho como cuidador de idosos por causa das restrições de horário da tornozeleira eletrônica, e começou a realizar 'bicos' para sobreviver", conta Maria. "E em um desses 'bicos', foi cortar galhos de uma árvore e acabou caindo", lamenta. O acidente foi fatal.
Uma das últimas fotos que Giovanni Carlos dos Santos bateu ao lado de Maria Vilani. Foto: Arquivo pessoalPara o neuropsicólogo Otávio Augusto Cunha Di Lorenzo, as descrições citadas trazem indícios de quadros depressivos devido ao “processo de prisão e submissão às medidas cautelares extremadas que essas pessoas sofreram”. Inclusive, advogados entrevistados pela Gazeta do Povo já caracterizaram essas medidas como "tortura" por ferirem a dignidade humana e causarem intenso sofrimento emocional.
Esse sofrimento, segundo Lorenzo, pode prejudicar a psique e gerar sintomas em todo o corpo, como ocorre quando um indivíduo passa mal devido ao nervosismo ou sente palpitação relacionada à ansiedade. “Há casos, inclusive, em que a pessoa pode até morrer do coração sem ter problemas cardíacos”, alerta. O quadro ocorre devido à Síndrome de Takotsubo ou síndrome do coração partido, uma cardiopatia induzida por estresse.
Além disso, ele explica que no caso dos presos do 8/1 existem agravantes como o silenciamento obrigatório, por meio da proibição do uso de redes sociais, e o bloqueio das contas bancárias e salários, que impedem essas famílias de terem recursos mínimos para sobreviver. “É uma humilhação da qual não têm como se defender porque a própria Justiça é seu algoz, e esse composto de sentimentos é profundamente adoecedor”.
Mineiro de 75 anos está com coágulo na cabeça e precisa retirar a tornozeleira para examesPara um torneiro mecânico aposentado de 75 anos, por exemplo, o tempo que passou no Complexo Penitenciário da Papupa após se abrigar das bombas de gás lacrimogênio nos atos do 8/1 abalou profundamente sua saúde física e mental. Hoje o morador de Minas Gerais, que preferiu não se identificar, sente dores articulares, está com depressão grave, precisa de uma cirurgia ocular e ainda sofreu uma queda recentemente que lhe causou um coágulo na cabeça.
“Agora, precisa retirar a tornozeleira para fazer exames, e estamos aguardando análise do ministro Alexandre de Moraes”, informa sua filha, citando que o pai também foi diagnosticado com uma bactéria após a prisão, que pode evoluir para câncer no estômago. “O médico já falou que toda doença se agrava quando o emocional está ruim, então o quadro de saúde só está piorando”, lamenta.
Pastor que segue preso na Papuda precisa de cirurgia urgenteOutra situação que aguarda análise de Moraes é a do pastor Jorge Luiz dos Santos, que segue preso na Papuda devido a um erro da Justiça, e apresenta diagnóstico de hemorroida interna nível 4 com dor intensa, sangramento e necessidade de cirurgia urgente. Segundo a advogada Carolina Siebra, a defesa solicita atendimento médico especializado desde 2023, mas até agora não obteve retorno.
Em maio do ano passado, a juíza da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal emitiu decisão favorável ao religioso, solicitando medidas de “resguardo da saúde e integridade física” do homem devido à doença. “Fica determinada a imediata adoção das providências necessárias”, informou no documento, que solicitava encaminhamento do detento à rede pública de saúde.
No entanto, o pastor não recebeu acompanhamento especializado, e tem evitado o atendimento com o clínico geral da prisão devido ao constrangimento. “Para passar pelo médico é preciso tirar a roupa, normalmente na presença de policial mulher, e tem que agachar, fazer todo o procedimento nu. Então, ele fica muito constrangido”, explica a advogada.
O pastor Jorge Luiz dos Santos apresenta diagnóstico de hemorroida interna nível 4 com dor intensa, sangramento e necessidade de cirurgia urgente. Foto: Arquivo pessoalEm nota enviada à Gazeta do Povo, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Distrito Federal (Seape-DF) informa que a revista é realizada “toda vez que o apenado tem que sair da cela, seja para atendimento médico, com advogado, banho de sol ou demais atividades”. Segundo a Seape, essa ação garante segurança aos profissionais que atuam no sistema penitenciário e também aos custodiados.
A pasta informa ainda que não oferece atendimentos especializados de saúde dentro das unidades prisionais do Distrito Federal. Por isso, presos que precisam desses tratamentos “são encaminhados, com escolta da polícia penal, para hospitais de referência”. A Seape não passou informações específicas a respeito do pastor Jorge Luiz dos Santos.
Professora de 55 anos precisa de hemodiálise três vezes por semana após ser presa no 8/1Outro caso de saúde agravada é da professora aposentada Ângela Maria Correia Nunes, de 55 anos. Presa dia 9 de janeiro por cozinhar no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, ela ficou quase 10 dias sem a medicação que utilizava para controlar o lúpus, doença em que o sistema imunológico ataca tecidos saudáveis do próprio corpo.
“Ficar sem os remédios fez com que meus rins começassem a falhar, então fui parar na UTI e estou há sete meses fazendo hemodiálise três vezes por semana”, lamenta a professora, ao informar que percorre 120 km quilômetros para realizar cada sessão. “Estou sobrevivendo, e não vivendo”, desabafa a paranaense, à espera de um transplante.
“Meu sentimento hoje é de que não perdi só meus rins, mas minha dignidade, meu direito de me expressar e de poder emitir opinião”, lamenta a mulher. “Psicologicamente abalada, vivo à base de medicamentos e tratamentos homeopáticos para conseguir dormir porque o sentimento de injustiça nunca vai passar”.
A professora aposentada Ângela Maria Correia Nunes, de 55 anos, percorre 120 km quilômetros três vezes por semana para realizar sessões de hemodiálise. Foto: Arquivo pessoalHomem de 43 anos tentou suicídio na prisão e segue recluso em ala psiquiátricaA saúde emocional abalada também levou diversos presos do 8/1 a atentarem contra a própria vida. O lanterneiro e pintor Claudinei Pego da Silva, por exemplo, tentou suicídio dentro do Complexo Penitenciário da Papuda e foi socorrido por policiais penais dia 9 de dezembro de 2023. Sua família clama para que o homem — pai de três crianças, de cinco, 11 e 12 anos — receba liberdade provisória para realizar tratamento psicológico em casa.
Claudinei tem parecer favorável de soltura emitido pela Procuradoria-Geral da República (PGR) desde 9 de outubro, mas o ministro Alexandre de Moraes manteve a prisão ao alegar existência de um vídeo que mostraria o homem danificando patrimônio público. A defesa informa que não teve acesso aos supostos registros.
Para tentar ajudar Claudinei, a Associação dos Familiares das Vítimas de 8 de Janeiro (Asfav) protocolou ofícios em diversos órgãos, mostrando a gravidade do quadro de saúde do homem. “Reiteramos que a restrição de liberdade não pode ser uma sentença de morte”, alertou a entidade no documento.
Quatro mortes do 8/1 já foram confirmadas, uma dentro do presídioNos 14 meses após os atos de 8 de janeiro, quatro pessoas perderam a vida após as prisões. Antônio Marques da Silva e Giovanni Carlos dos Santos faleceram em acidentes, Eder Parecido Jacinto faleceu em decorrência de problemas de saúde, enquanto Cleriston Pereira da Cunha morreu dentro do presídio.
O comerciante sofria com problemas do coração, e colegas relataram à Gazeta do Povo que ele passou mal diversas vezes na Papuda. Ele foi vítima de um mal súbito durante banho de sol no dia 20 de novembro de 2023, quase três meses depois de obter parecer favorável da PGR para liberdade provisória. O documento não foi apreciado pelo ministro Alexandre de Moraes.
Essa demora, segundo a família, foi decisiva para a morte do pequeno empresário. Por isso, os parentes entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 2 de fevereiro, pedindo a condenação de Moraes por prevaricação, maus-tratos, abuso de autoridade e tortura.
Cleriston Pereira da Cunha morreu dentro do Complexo Penitenciário da Papuda, deixando esposa e duas filhas. Foto: Arquivo pessoal“Morreu! Depois de 311 dias como um preso provisório ao qual foi negado, por três vezes, o reexame da sua preventiva. Morreu! Após longos e injustificáveis 81 dias do parecer dado pela PGR favorável à liberdade provisória requerida. Morreu! Porque lhe foi negado o direito de ter direitos”, aponta um trecho da ação redigida pelo advogado Tiago Pavinatto.
No texto, o advogado também reclama da “inércia” da PGR, pede afastamento do ministro Alexandre de Moraes de suas funções e cobra o pagamento de indenização à família de Cleriston por dano moral. O processo segue em tramitação.
Fonte: Por Raquel Derevecki
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