Editorial - O orgulho de Gilmar Mendes é a tragédia brasileira

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Editorial - O orgulho de Gilmar Mendes é a tragédia brasileira


Gilmar Mendes em sessão da Segunda Turma do STF, em abril de 2025. (Foto: Antonio Augusto/STF)


Porto Velho, RO - O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, aproveitou mais uma das frequentes ocasiões que tem para se pronunciar fora dos autos para continuar sua ladainha de ataques à Operação Lava Jato. Na Brazil Conference, realizada na Universidade Harvard, questionado sobre as decisões do Supremo que demoliram a operação, Gilmar respondeu que estava “orgulhoso desse processo que você chamou de ‘desmanche da Lava Jato’”.

Mas o decano não parou por aí, e comparou a maior operação de combate à corrupção da história do Brasil com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). “Era uma organização criminosa. O que eles faziam em Curitiba era criminoso (...) O que a gente escuta, falando como eles iriam destruir a vida empresarial do empresário A, B ou C, a gente pensa que é uma conversa do PCC”, afirmou, em referência às supostas mensagens trocadas entre o então juiz Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa, cuja autenticidade jamais foi comprovada, mesmo após várias perícias da Polícia Federal. “Eu percebi que havia exageros, que nós estávamos mantendo as prisões preventivas e só estávamos fazendo as libertações depois que faziam delações”, acrescentou.

Qualquer brasileiro com um mínimo de razão compreende o absurdo da comparação entre uma operação de combate à corrupção e uma facção cuja razão de existir é o crime

A virulência quando se trata da Lava Jato é característica de Gilmar Mendes, a ponto de ele ser o único ministro do Supremo com uma condenação no currículo por ofensas ao ex-procurador Deltan Dallagnol, inclusive por termos quase idênticos aos usados agora, nos Estados Unidos – embora desta vez o ministro tenha tomado a precaução de não se referir pessoalmente a nenhum integrante da Lava Jato. O ministro, que no início elogiava a operação, afirmando que o petrolão era o “filhote maior” do mensalão, que o PT instalara uma “cleptocracia” no Brasil, com “um plano perfeito” para se “eternizar no poder”, tornou-se um grande crítico da Lava Jato anos antes do circo midiático montado em torno das supostas mensagens, em 2019, e nunca mais virou o disco desde então.

Qualquer brasileiro com um mínimo de razão compreende o absurdo da comparação entre uma operação de combate à corrupção que, sim, usou de firmeza no desmonte do esquema montado pelo PT em conluio com partidos aliados e empreiteiras amigas, mas apenas aquela firmeza que a lei permitia; e uma facção cuja razão de existir é o crime, que se impõe nas prisões por meio do extermínio de adversários, que elimina policiais no atacado, e que não hesita em aterrorizar a população civil quando necessário, como ocorreu em São Paulo, em 2006. Trata-se de um despautério cuja falsidade é evidente, e que pode dizer muito sobre quem o profere, especialmente porque as supostas conversas nem sequer têm o teor que Gilmar lhes atribuiu, com menções a “destruição de empresários” ou coisa parecida.

E, mesmo quando a crítica ganha tons mais concretos, ela também é falsa, pois a Lava Jato jamais usou prisões preventivas como forma de conseguir delações. De fato, houve muitas prisões preventivas ao longo da operação, todas elas plenamente justificadas por cumprir os requisitos da lei processual penal, e não como um simples meio de coagir um investigado a colaborar; também é verdade que vários investigados aceitaram fazer a colaboração premiada. Mas nenhum destes acordos envolvia a soltura como “recompensa” pela delação; qualquer investigado que recuperasse a liberdade ao longo da operação só o fazia porque as exigências do artigo 312 do Código de Processo Penal já não se verificavam. Isso pode ser atestado pelo exame detalhado da farta documentação, como pedidos e decisões judiciais, produzida ao longo de anos de Lava Jato.

Ironicamente, quem tem agido da forma criticada por Gilmar Mendes é o próprio STF, especialmente o ministro Alexandre de Moraes. Basta recordar as circunstâncias da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, cuja prisão preventiva foi revogada justamente quando ele aceitou colaborar, e que depois ouviu de Moraes a ameaça de voltar à cadeia caso não confirmasse determinada versão dos fatos. Ou, ainda, a escandalosa troca de mensagens entre assessores de Moraes no STF e no TSE, com um órgão da corte eleitoral produzindo material para embasar os inquéritos no Supremo. Nada disso, claro, impediu Gilmar de defender Moraes em Harvard, mas a verdade é que, se os critérios que o decano do STF aplica equivocadamente à Lava Jato fossem aplicados também ao inquérito das fake news e aos processos do 8 de janeiro e da “minuta do golpe”, não restaria pedra sobre pedra.

O trabalho de que Gilmar Mendes tanto se orgulha é, no fim das contas, a impunidade daqueles que montaram o maior esquema de corrupção da história do país

Gilmar não desmontou a Lava Jato sozinho, claro; em casos como a reversão da jurisprudência do STF sobre a prisão em segunda instância, em 2019, foi ele o protagonista, pois, com um voto oposto ao que ele tinha proferido em 2016, ele formou a maioria pela soltura de todos os que não tivessem condenação transitada em julgado. Em outros episódios, no entanto, a primazia coube a colegas como Edson Fachin (autor da decisão que anulou todos os processos de Lula), Cármen Lúcia (que, para declarar Moro suspeito, mudou seu voto com o julgamento em andamento) ou, especialmente, Dias Toffoli (que vem anulado tudo o que encontra pela frente). É, sem dúvida, um trabalho coletivo, mas com Gilmar na linha de frente da demonização da Lava Jato diante da opinião pública.

O trabalho de que Gilmar Mendes tanto se orgulha é, no fim das contas, a impunidade daqueles que montaram o maior esquema de corrupção da história do país – alguns dos quais voltaram às posições de poder que detinham antes da Lava Jato; a inversão moral que transforma criminosos em vítimas, e agentes da lei em criminosos; e a garantia de que não haverá outra operação desse vulto em um futuro tão próximo, não importa o quanto se roube no Brasil. Uma tragédia brasileira, que condena o país ao atraso e o entrega aos ladrões, plenamente conscientes de que o crime compensou, compensa e continuará a compensar.

Fonte: Por Gazeta do Povo

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