
Grupo de indígenas quer reconhecimento da lei do marco temporal (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Porto Velho, RO - Quando o assunto é demarcação de terras indígenas, um cenário de antagonismo sempre é levantado entre indígenas e não indígenas. No entanto, grupos de pelo menos 13 etnias têm exposto seu posicionamento favorável à lei do marco temporal (Lei 14.701/2023) e mostram que também não há consenso entre os próprios indígenas sobre o tema. O grupo irrita ONGs e ativistas de esquerda e põe em xeque a representatividade alegada por organizações indígenas que questionam a constitucionalidade da lei, aprovada em novembro de 2023 pelo Congresso, em ação movida junto com partidos de esquerda no Supremo Tribunal Federal (STF).
A ação que trata do marco temporal no STF tem sofrido uma série de adiamentos. Nesta quinta-feira (27), a Advocacia Geral da União (AGU) apresentou uma nova manifestação no processo que fez com que o ministro Gilmar Mendes adiasse uma possível votação sobre as propostas já apresentadas. A manifestação da AGU traz uma nova proposta para alterar a lei ampliando a atuação do presidente da República na regulamentação do tema.
A reportagem da Gazeta do Povo conversou com indígenas e representantes das etnias munduruku, wapichana, kaingang, baniwa, tukano, baré, macuxi, cinta-larga, taurepang, patamona, ingaricó, xirixana e yanomami que entendem que a lei do marco temporal pode trazer benefícios para as suas comunidades. A busca por desenvolvimento por meio de atividades econômicas é um dos principais motivos apontados pelos indígenas para defender a lei.
Para esses indígenas, a atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs) e associações têm influenciado indígenas contra o marco temporal, sem falar sobre os benefícios dessa legislação. A lei do marco temporal (Lei 14.701/2023) define, dentre outros pontos, o dia 5 de outubro de 1988 como limite para a reinvindicação de áreas para demarcação de terras indígenas.
O advogado indígena e presidente da União Nacional dos Indígenas do Brasil, Ubiratan Maia, destaca a possibilidade de os indígenas fazerem parcerias agrícolas e mineração em suas áreas. Além disso, para ele, é importante garantir a possibilidade de facilitar as licenças para obras de infraestrutura de interesse nacional, como rodovias, ferrovias e redes de transmissão de energia elétrica. Hoje, essas obras enfrentam uma série de etapas de burocracia, que passam pela consulta a povos indígenas.
O diretor de integração da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiurr), Enver Garcia, afirma que os cerca de 22 mil indígenas, de pelo menos sete etnias, representados pela entidade também são a favor da lei do marco temporal. Para Garcia, ela “traz a garantia de terras demarcadas e encerra os conflitos em outras [em processo ou ainda não demarcadas]”.
Críticas a lideranças permeia fala de grupo favorável ao marco temporal
Os grupos de indígenas favoráveis e contrários ao marco temporal expõem a divisão entre os povos. Para os indígenas ouvidos pela Gazeta do Povo, as Organização Não-Governamentais (Ongs) e associações que atuam nessa questão manipulam os povos indígenas.
A indígena Jocimara Bosco Brandão, da etnia tukano, que vive no Amazonas, destaca a divisão entre os povos indígenas. Para ela, a atuação de entidades como a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) tem contribuído para a divisão e induzido indígenas a ser contra o marco temporal.
“O que a Foirn diz para os nossos parentes é que, com o marco temporal, nós nunca mais vamos pescar, não vamos mais trabalhar nossa roçada nem produzir nada. Não é isso. Nós nunca vamos deixar os nossos costumes de caçar, de pescar, de derrubar roça, de fazer farinha. Nós não vamos abandonar nossa cultura”, disse Jocimara.
Além de Garcia, o indígena Valdecir Fontes, da etnia baniwa do Amazonas, também é favorável ao marco temporal. “Essa lei não acaba com a demarcação. Ela garante que vai ter regramento e só quem comprovar que vive nas terras indígenas desde 1988 vai ter sua terra”, disse Fontes, que integra uma comunidade composta por aproximadamente 230 pessoas.
Os indígenas também se queixam das restrições que estariam sendo impostas por ONGs. Para o indígena baré José dos Santos, as ONGs só têm dito o que não pode ser feito. Ele lembra que seus avós já plantavam café e que ele mesmo já trabalhou com borracha, mas que agora as ONGs os impedem de “abrir roças”.
Para ele, as ONGs só “fazem palestras bonitas” e oferecem benefícios que nunca chegam. “O que nós temos visto são muitas promessas. Conseguiram manipular a mente dos parentes. Eu estava me afundando no pensamento das ONGs, mas agora entendo o que querem, mas nós não queremos ficar na míngua”, disse o indígena da etnia baré.
A indígena Jocimara também se queixa de ONGs que prometem recursos para projetos que não são colocados em prática. “A Foirn só vêm aqui para coletar assinatura. Dizem que isso vai trazer recurso para projetos de piscicultura, para termos casa de forno e ralador para trabalhar nossas roças de mandioca, mas isso não acontece”, explicou.
A reportagem tentou contato com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), responsável pela ação que questiona a constitucionalidade da lei do marco temporal, e com a Foirn, mencionada pelos indígenas ouvidos, mas não houve retorno até o fechamento da matéria.
Grupo a favor do marco temporal quer desenvolvimento para suas comunidades
Uma das expressões mais utilizadas pelos indígenas ouvidos pela reportagem da Gazeta do Povo foi o desenvolvimento. Para esse grupo de indígenas a favor do marco temporal, viver do seu trabalho, gerando atividades econômicas que sustentem as suas comunidades, é um dos maiores benefícios da lei.
O texto da lei do marco temporal faculta aos indígenas o desenvolvimento de atividades econômicas nas terras demarcadas. A possibilidade de desenvolver atividades agrossilvipastoris, uma das citadas na lei, é um sistema que combina a criação de animais com o cultivo de árvores e a prática agrícola.
“Nós queremos trabalhar e escoar a nossa produção, seja de mandioca, tapioca, goma, ou seja de cupuaçú, açaí, buriti”, disse a indígena tukano Jocimara Brandão.
Os indígenas também querem poder produzir em larga escala. “Para isso, precisamos ter a igualdade material mencionada na lei e que não nos é garantida na prática”, avalia o advogado indígena da etnia wapichana Ubiratan Maia.
A igualdade material é o princípio que visa a garantir que todos os indivíduos sejam tratados de forma igual e efetiva, em relação a todos os bens da existência. Para Maia, garantir igualdade material aos indígenas significa dar a possibilidade de produzir alimentos com sementes transgênicas.
“Hoje, somos proibidos de plantar transgênicos, mas muitos indígenas já se alimentam deles por meio das cestas básicas entregues pelo governo”, destaca a socióloga indígena da etnia kaingang Azelene Inácio.
O núemero de grupos indígenas favoráveis ao desenvolvimento das aldeias e reservas vem aumentanto. Eles começaram a receber também o apoio de outros entes da sociedade civil. Um deles é o think tank conservador Iniciativa Dex, que combate "o pensamento globalista de manter aldeias e terras indígenas como meras instituições pré-históricas sem direito ao progresso". A entidade promove um debate online sobre o tema no YouTube às 21h desta quinta-feira (27) com a deputada Sílvia Waiãpi e o cacique Raimundo Guajajara.
“Mineração não é opção, é necessidade”, diz indígena munduruku
Dentre as atividades econômicas almejadas pelos indígenas, a mineração foi uma das mais mencionadas. Indígenas destacaram que em algumas regiões essa atividade é a única opção. “A mineração não é opção, é necessidade”, afirmou um indígena da etnia munduruku que não quis ter seu nome revelado na matéria. Ele contou que a sua comunidade, no interior do Pará, já tentou produzir milho e arroz, mas acabou não tendo para quem vender, especialmente pela falta de apoio para o transporte da produção.
O indígena destacou ainda que o garimpo faz parte da vida da sua comunidade e que desde que seu pai nasceu, na década de 40, já existia garimpo. “Os garimpeiros aqui não são invasores como falam. Eles entram porque conversam com a gente, alguns são convidados, e fazem parcerias para poder garimpar”, disse.
A parceria com os garimpeiros, de acordo com o indígena, se deve ao fato de que não vendem máquinas para mineração para os indígenas. “Não temos como financiar uma máquina. Isso nos obriga a ser parceiros dos garimpeiros”, afirmou.
Apesar de defender a mineração, o indígena disse ser contra a lei do marco temporal na íntegra. Para ele, a questão da demarcação é um ponto negativo. “Acho ruim para os parentes que ainda não têm suas terras demarcadas”, pontuou.
Hoje, a atividade - que poderia ser permitida em pequenas escalas - não pode ser feita por ausência de regulamentação específica para mineração por parte de indígenas. A regulamentação, prevista no Decreto nº 88.985, de 10 de novembro de 1983, está a cargo da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Indígenas reivindicam títulos definitivos das terras que hoje são da União
As terras indígenas demarcadas atualmente no Brasil são bens da União, como determina a Constituição. Há indígenas, no entanto, que vem defendendo que isso deveria mudar. Para esse grupo, a partir da demarcação, os indígenas deveriam ter o título definitivo das suas terras. O pedido para a alteração constitucional já teria sido, inclusive, entregue para o ministro Gilmar Mendes, de acordo com o indígena munduruku ouvido pela reportagem.
A reivindicação é reforçada pelo indígena José dos Santos, da etnia Baré, que vive na Terra Indígena Alto Rio Negro, no Amazonas. Ele é uma liderança tradicional da sua comunidade e conta que acompanha a luta dos indígenas desde as "Diretas Já". “Mesmo com a demarcação, as terras não são nossas. Elas são da União. Nós queremos os títulos definitivos”, disse Santos.
Sucessivos adiamentos na ação no STF atrasa solução para indígenas
A ação que trata da lei do marco temporal passou a ser debatida em uma comissão de conciliação no STF, composta por indígenas, parlamentares, partidos e entidades do agronegócio. A comissão foi criada em agosto de 2024, pelo ministro Gilmar Mendes, relator do tema, com o objetivo de buscar soluções para garantir direitos dos povos originários e da população não-indígena.
A previsão inicial era de que os trabalhos fossem encerrados após 10 audiências, encerrando em novembro de 2024. No entanto, em 21 de novembro, Mendes prorrogou os trabalhos até o final de fevereiro. Os debates avançaram, no entanto, não houve consenso ao final do segundo prazo estipulado e houve uma suspensão dos trabalhos. Atualmente, a previsão é que a conclusão ocorra no dia 2 de abril.
Fonte: Por Aline Rechamann
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