
Porto Velho, RO - Quando os constituintes brasileiros decidiram incluir a imunidade parlamentar entre os princípios fundamentais da República, fizeram-no com o objetivo claro de proteger o exercício livre e independente dos mandatos legislativos. A lógica é simples: deputados e senadores devem ter a segurança jurídica de poder formular críticas e discutir temas controversos, sem receio de represálias judiciais. Por isso, o artigo 53 da Constituição Federal de 1988 dispõe que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Trata-se de uma afirmação bem clara e jamais deveria suscitar qualquer dúvida sobre seu alcance e aplicabilidade, muito menos ser alvo de relativização.
Contudo, à semelhança do que vem ocorrendo com outras garantias constitucionais, essa prerrogativa fundamental tem sido sistematicamente enfraquecida. O caso mais recente que evidencia esse fenômeno é a condenação do deputado federal Nikolas Ferreira pela Justiça do Distrito Federal, em razão de um discurso proferido da tribuna da Câmara dos Deputados em março de 2023.
Em meio a suas atribuições, cabe aos parlamentares debater temas e fazer críticas que eventualmente poderão desagradar. É exatamente para permitir esses debates que foi instituída a imunidade parlamentar
Na ocasião, durante sessão alusiva ao Dia Internacional da Mulher, Nikolas usou uma peruca loira, autodenominou-se "deputada Nicole", e fez críticas contundentes à ideologia de gênero, especialmente a dois aspectos específicos: a possibilidade de homens biológicos, uma vez declarando-se mulheres, frequentarem banheiros femininos e participar de provas esportivas femininas, competindo contra (e quase sempre vencendo tranquilamente).
A sentença da juíza Priscila Faria da Silva, da 12ª Vara Cível de Brasília, afastou o argumento da defesa sobre a imunidade parlamentar, ao considerar que as falas configurariam discurso de ódio e que a imunidade não poderia servir de “fundamento para a irresponsabilidade” do deputado. Trata-se, no mínimo, de uma interpretação preocupante, pois ignora o escopo e o espírito do dispositivo constitucional da imunidade parlamentar, que, ressaltamos, não pode ser relativizada, por mais controversos que sejam os temas ou posicionamentos dos deputados e senadores. Ainda que a condenação a Nikolas possa ser revertida em instâncias superiores – e quiçá isso aconteça, com a Justiça reconhecendo a inviolabilidade da imunidade parlamentar –, é preocupante a visão cada vez mais comum de que os dispositivos constitucionais não são mais basilares, podendo ser "interpretados" ou relativizados a qualquer momento.
Importante lembrar que a mesma fala de Nikolas já havia sido analisada pelo Supremo Tribunal Federal, onde cinco queixas-crimes por suposta prática de transfobia foram rejeitadas pelo ministro André Mendonça, com base em parecer da Procuradoria-Geral da República. Para a PGR, embora pudesse ser considerada de mau gosto, a manifestação de deputado está protegida pela imunidade parlamentar, pois foi proferida na tribuna em plenário. Mendonça ressaltou que a “atuação livre dos parlamentares na defesa de suas opiniões” é condição indispensável para o pleno exercício das funções legislativas. Esse entendimento, porém, mostra-se cada vez mais raro.
Não é de hoje que juízes optam por relativizar a imunidade parlamentar. O próprio Nikolas Ferreira, por exemplo, foi denunciado pela PGR por suposto crime de injúria contra Lula, após ter o parlamentar ter dito que Lula era um “ladrão que deveria estar na prisão” ao discursar, em inglês, durante a Cúpula Transatlântica da Organização das Nações Unidas (ONU); Gustavo Gayer tornou-se réu por calúnia e difamação ao criticar, em vídeo, a reeleição de Rodrigo Pacheco à presidência do Senado; Daniel Silveira foi preso em 2021 por declarações ofensivas a ministros do STF.
Mais recentemente, o deputado Marcel van Hattem tornou-se alvo de inquérito por suposto crime contra a honra do delegado da Polícia Federal Fábio Shor, a quem chamou de “abusador de autoridade” em discurso na Câmara. O relator do caso, ministro Flávio Dino, afirmou que a fala poderia “ultrapassar as fronteiras da imunidade parlamentar” – mesmo diante de uma redação constitucional que não deixa dúvidas ao proteger “quaisquer” opiniões, palavras e votos.
Em meio a suas atribuições, cabe aos parlamentares debater temas e fazer críticas que eventualmente poderão desagradar. É exatamente para permitir esses debates que foi instituída a imunidade parlamentar. Sem ela, temas importantes – como o debatido pelo Nikolas Ferreira e sua “Nikole”, o de que o gênero é uma construção social e pode ser autoatribuído de acordo com o sentimento do indivíduo, prescindindo da biologia – jamais serão debatidos no Congresso por medo de represálias e processos na Justiça.
A imunidade parlamentar não é um privilégio individual, mas uma salvaguarda institucional da democracia e deveria ser defendida com afinco pela sociedade e, mais ainda, pelo próprio Congresso, que, infelizmente, tem preferido a timidez – para não dizer omissão. Relativizar a imunidade parlamentar, seja em qualquer instância judicial, é abrir caminho para um Congresso amordaçado, onde apenas discursos autorizados possam ser proferidos, ou seja, o oposto de uma democracia.
Fonte: Por Gazeta do Povo
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