
Por Erich Thomas Mafra
O fenômeno da recessão global da liberdade de expressão não se restringe a estados autoritários, atingindo também democracias consolidadas. A afirmação vem de uma das vozes mais respeitadas mundialmente quando o tema é liberdade de expressão: o advogado dinamarquês Jacob Mchangama.
Segundo ele, “democracias estão cada vez mais restringindo a liberdade de expressão. E fazem isso em nome da proteção da democracia”. Mchangama participou, junto com Fernando Schüler, cientista político e curador do projeto "Fronteiras do pensamento", do último dia da masterclass que teve como objetivo aprofundar a compreensão sobre um dos pilares mais importantes da democracia. O evento foi realizado em São Paulo nesta semana pelo Instituto Sivis, em parceria com a Faculdade Belavista, reunindo especialistas brasileiros e internacionais.
Mchangama e Schüler ofereceram visões complementares sobre a situação da liberdade de expressão no Brasil e no mundo, destacando a urgência do tema e propondo caminhos para o futuro. O advogado dinamarquês observou que há uma percepção crescente de que a liberdade de expressão representa uma ameaça, sendo utilizada como arma por grupos que exploram novas tecnologias para minar a paz social.
Para ele, isso leva à criação de leis que introduzem o controle governamental sobre mídias sociais. Durante a palestra, ele citou como exemplo recente a decisão da Turquia de banir o chatbot de inteligência artificial (IA) Grok, sob a justificativa de que a tecnologia gerava respostas críticas ao presidente Tayyip Erdogan.
“Este é um passo muito lógico, não é?”, provocou Mchangama. “Você tem uma IA generativa, a IA generativa diz coisas de que os políticos não gostam, e qual é a solução? Bem, vamos proibi-la. E esta é a trajetória atual em todo o mundo, com poucas exceções.”
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Como o Brasil ainda falha na liberdade de expressão
Mchangama expressou surpresa e preocupação com o fato de o caso do comediante Léo Lins no Brasil não “conectar com todas as pessoas”, contrastando com a forte reação que haveria na Dinamarca se um humorista fosse condenado a oito anos de prisão. “É um pouco surpreendente e um preocupante para mim que não seja algo que toque mais os brasileiros”, afirmou.
“Isso representa um perigo claro e presente. Não apenas contra a democracia, mas também contra a capacidade das pessoas de se expressarem.” O advogado enfatizou o papel crítico do Brasil como um “Estado pêndulo” regional e global para a liberdade de expressão e a democracia.
“Se o Brasil se tornar uma democracia mais iliberal, avançando no caminho da censura e do controle político da liberdade de expressão, isso terá implicações enormes não apenas para a América Latina, mas também para o mundo”, alertou Mchangama.
Fernando Schüler, por sua vez, destacou que o Brasil se tornou um país “pop internacionalmente” por “razões ruins” relacionadas à liberdade de expressão. Ele demonstrou preocupação com o fato de que “muita gente do Brasil não acredita ou acha que a gente tem um problema com liberdade de expressão”, incluindo boa parte dos intelectuais e das autoridades.
Schüler apresentou casos que considerou “bizarros” de censura no país, como o bloqueio dos perfis do empresário Luciano Hang e do blogueiro Monark. “A primeira forma de resolver um problema é reconhecer que você tem um problema”, provocou.
Mchangama, por sua vez, argumentou que o bloqueio de contas nas redes sociais imposto pelo Judiciário não cria mais confiança e provavelmente “aumenta a polarização e a desconfiança nas instituições”. Segundo ele, a intervenção, baseada na ideia de “proteger a democracia e as pessoas de informações perigosas”, parte do pressuposto de que “não se pode confiar nas pessoas comuns” e que, portanto, juízes devem decidir o que é ou não verdade.
Schüler atribuiu essa situação à ausência de uma tradição liberal no Brasil e à dificuldade do país em lidar com a “frieza da regra” e a impessoalidade do direito. Ele fez referência ao conceito de “cordialidade do brasileiro”, descrito por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936), no qual o autor explica como as relações pessoais frequentemente se sobrepõem às normas impessoais, marcando uma aversão à formalidade no convívio social. “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez”, resume Holanda na obra.

Caminhos para o futuro da liberdade de expressão
Ambos os especialistas ofereceram caminhos para reverter a tendência atual e fortalecer a liberdade de expressão. Mchangama enfatizou que a defesa mais sólida reside na construção de uma cultura cívica de tolerância e diálogo.
Para ele, a liberdade de expressão é a antítese da violência e permite resolver diferenças pacificamente. Sugeriu o uso de “contra-discurso” como alternativa à censura no enfrentamento a discursos de ódio e extremismo, capacitando as pessoas a lidar com esses desafios sem recorrer à restrição.
O dinamarquês também propôs a criação de um ecossistema de informação mais descentralizado como antídoto ao controle centralizado, mencionando a implementação de middleware – camadas intermediárias de software que permitem aos usuários personalizar filtros e algoritmos de recomendação, em vez de depender exclusivamente do sistema das plataformas. Segundo ele, diferentes modelos de negócios para redes sociais poderiam otimizar não apenas o engajamento como a confiança.

Ele citou Taiwan como um “exemplo muito interessante” de país que construiu uma democracia digital resiliente, utilizando soluções que capacitam os cidadãos e que “não resultou em altos graus de polarização”. Já Schüler defendeu a necessidade de regras claras e objetivas para a definição de crimes, em oposição a decisões ad hoc ou baseadas em “afetos”. Para ele, “quando se discute a liberdade de expressão, sempre a pergunta é 'qual é a regra do jogo?'
O cientista político também defendeu a consistência na defesa desse direito, independentemente da orientação política, como estratégia para persuadir um público mais amplo. Ambos concordaram que o estudo de exemplos históricos é crucial.
Mchangama afirmou que a história da liberdade de expressão permite “ampliar a visão” para perceber que outras gerações enfrentaram questões semelhantes e que aqueles que favoreceram restrições “não estavam do lado certo”. Schüler, por sua vez, destacou a relevância de analisar a própria história brasileira para compreender como a censura foi usada e evitar a repetição de padrões.
As palestras enfatizaram que, embora a tecnologia ofereça ferramentas sem precedentes para a expressão, é a cultura cívica e o compromisso com a regra que verdadeiramente salvaguardarão a liberdade de expressão em um momento de desafios crescentes, no Brasil e no mundo.
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