
Porto Velho, RO - Enquanto o Congresso Nacional patina no cumprimento de seu papel como contrapeso ao Supremo Tribunal Federal, permitindo a manutenção da juristocracia autoritária em que o Brasil se transformou, cabe à sociedade civil organizada e aos formadores de opinião acordar de um estupor que já dura mais de seis anos para entrar de cabeça na luta pela restauração da democracia no Brasil. Um sinal ainda incipiente, embora promissor, deste despertar veio da Ordem dos Advogados do Brasil, em três episódios diferentes, todos ocorridos nos últimos dias.
A primeira manifestação veio na terça-feira, dia 5, quando a seccional fluminense da OAB publicou nota, manifestando preocupação com a “escalada nas restrições impostas às liberdades de quem ostenta a condição de réu e de investigado, notadamente as de expressão e manifestação pacífica”. O texto acrescenta que “em investigações criminais em curso é necessário prudência no uso de medidas restritivas às liberdades, sobretudo na sua imposição de ofício, a bem do Estado de Direito. De igual modo, o devido processo legal criminal é personalíssimo e não admite sanções por atos de terceiros”. Ainda que não houvesse nenhuma menção explícita a casos específicos, é evidente, pelo conteúdo e pelo timing, que a OAB-RJ se referia à prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, decretada de ofício por Alexandre de Moraes no dia anterior, após o ex-presidente saudar por chamada de vídeo manifestantes no Rio de Janeiro e em São Paulo, no último domingo.
As notas e as manifestações ocorridas no congresso em Curitiba indicam que a “espiral de silêncio” em torno dos desmandos do STF está se rompendo
No Paraná, a seccional da OAB realizou, nos dias 6 e 7, um congresso intitulado “STF: defesa da democracia e o necessário respeito ao devido processo legal”. Por um lado, é verdade, houve palestrantes e debatedores que, de certa forma, aliviaram e até justificaram algumas ações recentes do Supremo, ou que criticaram ferramentas fundamentais para o combate à corrupção, como a delação premiada. Mas, por outro lado, não faltaram menções ao protagonismo permanente do STF como “um sinal ruim para o teor da democracia”, como disse o presidente da OAB-PR, Luiz Fernando Casagrande Pereira; críticas ao conteúdo e à vagueza dos votos dos ministros nos julgamentos do 8 de janeiro; reclamações sobre a violação do direito à ampla defesa nos julgamentos virtuais com sustentações orais gravadas, e não feitas diante dos ministros; e críticas à forma como o STF viola o princípio do juiz natural.
Por fim, também na quinta-feira, último dia do evento paranaense, o Conselho Federal da OAB publicou nota afirmando que “medidas penais, especialmente as que limitam a liberdade, devem ser adotadas com fundamento inquestionável e com pleno respeito às garantias constitucionais, inclusive o direito à liberdade de expressão”, e que é “fundamental o respeito às prerrogativas da advocacia – como o sigilo profissional, o acesso pleno aos autos dos processos e à sustentação oral síncrona – que são garantias constitucionais”. Novamente, não há referência a casos ou indivíduos específicos, mas é difícil dissociar o conteúdo da nota dos processos do 8 de janeiro e de Bolsonaro.
Este trio de manifestações contrasta fortemente com a baixeza de um ex-presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz, que desejou uma “bala na nuca” de Bolsonaro. Confrontado com a torpeza de seu palavreado, ele recuou dizendo que havia usado uma “figura de linguagem”, embora tivesse também dito que, em seu “mundo ideal”, a “traição aos cânones democráticos” cometida por Bolsonaro mereceria pena de morte. Mesmo descontando-se a rixa particular entre ambos, iniciada com agressões de Bolsonaro à memória do pai de Santa Cruz, desaparecido político durante a ditadura militar, trata-se de linguajar inaceitável, ainda que ele não tenha mais cargo de liderança na OAB.
Que a OAB, por meio de seu Conselho Federal ou de suas seccionais, esteja se pronunciando contra os abusos do Supremo não é coisa pouca: meses atrás, era fácil constatar uma “espiral de silêncio” entre juristas; o medo de retaliações ou de prejuízo à carreira (que, por si só, já é um indicativo de como funcionam as coisas em Brasília) bloqueava as críticas, facilitando os avanços do Supremo sobre as garantias dos brasileiros. As duas notas e as manifestações ocorridas no congresso em Curitiba indicam que o dique começou a ser rompido. Mas, embora isso não seja pouco, também não é suficiente, como já apontou ao menos uma associação de juristas ao comentar a nota do Conselho Federal da OAB.
Isso porque a crítica, para ressoar mais fundo no restante da sociedade, precisa ser mais contundente. “A OAB jamais tomará partido de qualquer lado político-ideológico”, diz a nota do Conselho Federal, mas isso não pode servir de pretexto para que abusos reais, contra pessoas reais, não sejam denunciados com clareza. Afirmar com todas as letras que Bolsonaro, ou a cabeleireira Débora, ou as idosas Vildete Guardia e Iraci Nagoshi (para citar apenas alguns poucos exemplos), estão sendo vítimas de abuso judicial em nada compromete a neutralidade político-ideológica da OAB, pelo contrário: reforça o compromisso da entidade com a proteção do cidadão, seja quem for, contra o poder ilimitado do Estado.
Deixar o Supremo seguir sua espiral autoritária não é mera questão de “descredibilidade”, como afirmou um palestrante do congresso em Curitiba. O que está em jogo é muito maior que a credibilidade de uma instituição: é o fim de um período em que já não se pode chamar o Brasil de nação democrática. Em outros períodos da história brasileira, a OAB assumiu um protagonismo destemido em defesa das liberdades, e precisa fazê-lo também agora. O que vimos nestes últimos dias precisa ser um pontapé inicial para algo muito maior.
Fonte: Por Gazeta do Povo
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