
Porto Velho, RO - A Lei de Anistia de 1979 foi amplamente apoiada pela esquerda brasileira como um passo crucial para libertar companheiros que tinham sido detidos ou exilados durante a ditadura militar. Alguns foram presos apenas por se manifestarem contra o regime, enquanto outros participaram de sequestros e luta armada.
A esquerda atual, incluindo figuras ligadas ao legado de 1979, adotou o jargão ‘sem anistia’ para os presos de 8 de janeiro de 2023. O argumento é que todos os presentes na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro cometeram crimes contra a democracia, independentemente da participação em manifestações e dos delitos.
Em 1979, no entanto, a esquerda exigia que a anistia fosse “ampla, geral e irrestrita” para que incluísse todos os presos durante a ditadura militar. Até mesmo os que sequestraram, roubaram bancos e cometeram crimes mais graves.
A lei da Anistia de 1979 (nº 6.683) foi aprovada conforme queriam, mas incluía todos os "crimes conexos". Ou seja, beneficiava quem era contra o regime, mas também os agentes da ditadura. Apesar das oposições e até mesmo greve de fome de militantes, o acordo representou o limite do que foi possível negociar na transição democrática.
Veja o que pessoas da esquerda, que se beneficiaram na Anistia de 1979, disseram na época sobre a importância da medida.
Leonel Brizola: o mais longo exílio
Brizola já tinha sido deputado e governador do Rio Grande do Sul, sua terra natal, quando foi para o exílio de 15 anos, o mais longo de um político brasileiro. A vida clandestina começou pelo Uruguai, passou pelos Estados Unidos e terminou em Portugal quando, com a notícia da anistia, retornou ao Brasil no dia 6 de setembro de 1979.
“Venho deste longo exílio. Aqui chegamos com o coração cheio de saudade, mas limpo de ódios”, disse Brizola entre milhares de pessoas que o aguardavam em Foz do Iguaçu.
Brizola era uma figura importante no cenário político e esperado pelos colegas para definir novos rumos com a redemocratização. A partir da anistia, vários partidos foram criados, entre eles, o PDT (Partido Democrático Trabalhista), do qual foi fundador.
”A minha anistia é ampla, geral e irrestrita. Espero que haja reciprocidade. Sendo realmente assunto de interesse nacional, eu não terei problema em conversar com quem que seja, até mesmo do governo”, disse Brizola ao Jornal do Brasil. Ele morreu em 2004.
Betinho: a volta do irmão do Henfil
O sociólogo e ativista de esquerda Hebert José de Sousa ficou conhecido pelo apelido “Betinho”, mas durante a ditadura militar ele era o famoso pela citação na música “O Bêbado e o Equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco, eternizados na voz de Elis Regina. A canção clamava pela “volta do irmão do Henfil” e virou um dos hinos do período.
Betinho era comunista e participava de movimentos sociais contra fome e a favor da reforma agrária antes mesmo da ditadura. No dia que desembarcou, disse, emocionado entre amigos: “Eu trago do comitê de anistia do México uma grande saudação de todo movimento que foi feito lá, um agradecimento e a mesma posição de lá e aqui só estaremos o dia que a anistia for ampla, total e irrestrita”.
A anistia lhe permitiu voltar à vida de ativismo social no Brasil. Depois do exílio, ele fundou o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e lutou conta a fome e a AIDS. Betinho morreu aos 61 anos, em 1997, em decorrência de ter contraído o vírus em uma transfusão de sangue por causa da sua hemofilia congênita.
Em 2010, a Comissão da Anistia reconheceu Betinho como anistiado político (o qual, diferente da anistia que se refere ao ato jurídico, trata do indivíduo) e concedeu uma indenização retroativa e mensal para a viúva dele por causa da perseguição política durante a ditadura militar. Maria Nakano também recebeu direito a pensão vitalícia.
Luís Carlos Prestes: o líder comunista
Um dos maiores símbolos da história da esquerda brasileira, Luís Carlos Prestes se tornou conhecido por liderar nacionalmente a 'Coluna Prestes', movimento de militares de baixa e média patente insatisfeitos com o governo brasileiro.
Entre 1925 e 1927, o fundador do Partido Comunista Brasileiro liderou um grupo de cerca de 1.500 combatentes em várias regiões do país para pressionar o presidente Arthur Bernardes a renunciar ao cargo e, com isso, realizar uma reforma sociopolítica no país.
Prestes foi anistiado duas vezes. A primeira foi no governo de Getúlio Vargas. Acusado de envolvimento na morte de Elza Fernandes em 1936, foi anistiado por Vargas em 1945. Perseguido pela ditadura militar de 1964, Prestes exilou-se com a família na União Soviética em 1971 e retornou ao Brasil após a anistia de 1979.
“As famílias dos que morreram ou sofreram têm o direito de reclamar justiça”, disse ele em entrevista ao Jornal do Brasil na época. Prestes, porém, criticou o indulto proposto pelo general João Figueiredo: “A anistia parcial é uma distorção histórica pois o governo que se instalou com violência absolve a si mesmo, mas não aos que reagiram da mesma forma”.
Deixou o PCB e ingressou no Partido Democrático Trabalhista (PDT), criado por Brizola, do qual foi presidente de honra. Morreu em 1990, no Rio de Janeiro, aos 92 anos.

Miguel Arraes: socialista popular
Miguel Arraes foi um líder proeminente no Nordeste com legado para a esquerda brasileira. Foi três vezes governador e três vezes deputado federal de Pernambuco e da sua descendência política vieram o candidato à presidência Eduardo Campos, morto em um acidente aéreo em 2014, João Henrique Campos (PSB), atual prefeito do Recife e uma das apostas para a era pós-Lula.
Arraes foi cassado em 1964. Viajou para a Argélia, sob ameaça de nova prisão, e retornou ao Brasil em 1979. Após o regresso, comandou o Estado por outros dois mandatos. Sua chegada foi esperada por cerca de 100 mil pessoas (segundo contagem da época), entre artistas, povo e políticos. Lula era um deles.
Em Santo Amaro, bairro do Recife, Arraes disse à multidão: “A anistia que está fazendo sair dos cárceres os combatentes da liberdade, tudo isso se deve ao povo. É uma dívida para com o povo”.
Segundo o jornal República, que registou a chegada de Arraes, o então jovem político e presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, Luiz Inácio da Silva, disse que foi até lá para ser solidário com “uma pessoa que saiu como grande líder e voltou como grande líder, por sua humildade”.
“Depois, vim porque tenho o compromisso moral de dizer ao ex-governador da necessidade que a classe trabalhadora tem de participar de todas as decisões políticas”, disse Lula. Arraes faleceu em 13 de agosto de 2005, no Recife, vítima de infecção generalizada.
Therezinha Zerbini: Movimento Feminino pela Anistia
Therezinha era assistente social, advogada e ativista de direitos humanos. Casada com um general contrário ao golpe militar, ela atuou na resistência à ditadura. Em 1968, foi presa por ajudar um frei a conseguir o sítio em Ibiúna (SP) onde seria realizado o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Segundo o site Memórias da Ditadura, Therezinha ficou detida por cinco dias e presenciou as torturas sofridas por Frei Tito. Depois, foi transferida para o Dops até ser levada ao Presídio Tiradentes, onde ficou seis meses.
Em 1975, fundou e liderou o Movimento Feminino pela Anistia. Em manifesto de 1979, declarou que “A anistia é o direito das mulheres perseguidas e o passo para a igualdade na democracia”. Em entrevista à revista Brasil Mulher, em 1976, a ativista da esquerda disse que a luta pela anistia “não é luta somente de mulheres, mas de todo o povo brasileiro”.
“A nossa perspectiva é a mais promissora porque sabemos perfeitamente que a anistia é uma questão fundamental dentro de qualquer projeto consequente de abertura democrática”.
Depois da anistia, Therezinha ajudou a fundar o PDT, ao lado de Brizola, e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Fernando Gabeira: anistia é direito humano
No final dos anos 60, ingressou na luta armada contra a ditadura militar pelo grupo leninista Dissidência Comunista, que se tornou o Movimento 8 de Outubro, ou MR-8.
Gabeira participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick em 1969. A esquerda queria pressionar o governo militar a trocá-lo por 15 presos políticos (que incluía o ex-ministro da Casa Civil de Lula, José Dirceu). Conseguiram e os militantes foram exilados.
Gabeira foi para a Argélia, passou por outros países e ganhou o perdão com a anistia de 1979. No seu retorno, voltou ao jornalismo e escreveu o episódio no livro (que virou filme) “O que é isso, companheiro”?
“Vou tentar integrar-me na luta política do Brasil e juntar-me as pessoas que lutam pela anistia, porque graças a atuação do Comite Brasileiro da Anistia é que eu voltei e outros voltaram”, disse ele, em 1979, na chegada do seu exílio de dez anos.
No seu retorno, entrou e deixou o Partido dos Trabalhadores, criado após a redemocratização, e fundou o Partido Verde. Gabeira é um dos poucos membros da esquerda que defende que a anistia para os participantes dos atos de 8 de janeiro.
“Os vencedores tinham que ser um pouco mais generosos. Acho que era preciso parar, pacificar um pouco mais o país. Um pouco mais de generosidade dos vencedores”, disse em entrevista ao canal My News, em agosto deste ano sobre 2023.
Para ele, há dosagens de penas aplicadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) acima da justiça. “É uma correlação de forças. Eles lutam por anistia de um modo geral, trabalham muito nesse tema, pensam muito no Bolsonaro, que é um homem que tem poder, é profissional, tem filhos profissionais da política, tem excelentes advogados”, afirmou.
“Mas essa raia miúda, anônima, que ficou no processo, ninguém se preocupa muito com ela. Nem a imprensa, que eu acho que deveria se preocupar, no meu entender.”
Fonte: Por Raphaela Ribas
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