
(Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Porto Velho, RO - Em 18 de fevereiro de 2025, o Ministério Público Federal apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma denúncia contra diversas de autoridades, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro, sustentando que os denunciados formaram uma organização criminosa com o objetivo de atentar contra a democracia. O fato chama a atenção menos pelo ineditismo e mais pela fragilidade dos elementos apresentados na peça acusatória.
O primeiro aspecto que salta aos olhos é a estrutura da denúncia - mais de 250 páginas, priorizando um encadeamento narrativo ao invés da exposição objetiva dos fatos e das provas concretas. Logo na primeira análise se percebe que a peça representa tentativa de construir uma narrativa política, e isso fica óbvio quando se nota que a petição se vale de inferências, suposições e interpretações de discursos, sem apresentar qualquer nexo de causalidade direto entre intenção e execução de atos reputados criminosos.
Yuval Noah Harari, no livro 21 Lições para o Século 21, ensina que o problema com as narrativas é que elas são falsas - e isso se amolda perfeitamente ao caso. A denúncia - que se insere no âmbito jurídico, onde qualquer acusação deve ser fundada em provas concretas e alegações de fatos que sejam concatenáveis, para gerar nexo de causalidade entre a conduta e o resultado -, se apoia em um arranjo conveniente de eventos que reforçam uma tese predefinida, corporificando um viés de confirmação evidente ao ignorar qualquer possibilidade de interpretação, ainda que mais plausível, que contradiga a narrativa acusatória, ao mesmo tempo em que se amplifica cada detalhe que possa aparentemente reforçá-la.
O fato chama a atenção menos pelo ineditismo e mais pela fragilidade dos elementos apresentados na peça acusatória
Outro ponto crítico é a ausência de descrição concreta do suposto plano operacional, que seja minimamente convincente em relação à existência de uma real tentativa de golpe de Estado. Por mais reprováveis que pudessem ser os discursos políticos e declarações retratados na denúncia, estes não são suficientes para caracterizar uma empreitada criminosa nos moldes em que a acusação pretende emplacar. Nunca é demais lembrar que o direito penal exige que sejam demonstrados atos efetivos e deliberados de execução, e não apenas uma intenção presumida com base em interpretações.
Nos últimos anos foram realizadas literalmente centenas de diligências de busca e apreensão de documentos e outros tipos de apurações abrangendo muitas dezenas de pessoas públicas, conforme amplamente noticiado. E mesmo com todo esse esforço investigativo, o máximo a que se chegou foi uma denúncia sem elementos concretos que sustentem de maneira objetiva e viável a tese acusatória - fato que, por si só, põe em xeque a solidez da denúncia e reforça a percepção de que há uma construção narrativa ao invés de um caso jurídico robusto.
Além disso, nada há de novo no conteúdo da denúncia que não tenha sido previamente objeto de vazamentos das investigações e amplamente explorado pelo noticiário. A ausência de fatos novos ou provas inéditas indica que o caso – já morno – é velho conhecido do grande público, que, por sua vez, sequer havia "comprado a ideia" da acusação na medida esperada, fato que descortina a fragilidade do material probatório e a possível intenção de prolongar a narrativa jurídica em busca de repercussão política.
Mas não é só. A situação fica mais grave quando a peça parte das mais altas instâncias do Ministério Público Federal, órgão que tem o dever de atuar como guardião da legalidade e da ordem jurídica, não como instituição que usa interpretações extensivas da lei para construir uma acusação de impacto midiático. Basta verificar que, em qualquer contexto viável, uma denúncia baseada em inferências e sem provas substanciais sequer deveria ser recebida pelo Judiciário; mais do que isso, talvez não devesse sequer ser apresentada.
Se normalizarmos o uso do sistema de justiça como ferramenta de disputas políticas, em que processos penais são conduzidos com base em construções narrativas e não em fatos objetivos, corremos o risco de corrosão do Estado de Direito, comprometendo a segurança jurídica de todos. Se há crimes a serem investigados, que se investiguem e sejam denunciados com provas sólidas.
Como já vem sendo alertado há um bom tempo, não pode ser admitido que o direito penal seja instrumentalizado para sustentar narrativas políticas sob o pretexto de defesa da democracia. A sociedade e os operadores do direito têm não somente o direito, mas o dever de resistir a esse tipo de distorção.
O combate a supostas ameaças antidemocráticas não pode, paradoxalmente, subverter os princípios do devido processo legal. Caso contrário, configuraremos uma incoerência gritante: destruir garantias fundamentais em nome da sua suposta proteção. E isso, por si só, é um risco ainda maior para o futuro da democracia no Brasil.
Fonte: Por Karina Kufa
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