Editorial - A perseguição a Ives Gandra e o papel da OAB

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Editorial - A perseguição a Ives Gandra e o papel da OAB


(Foto: Divulgação/Andreia Tarelow)

Porto Velho, RO - Nem mesmo Kafka imaginaria um enredo tão absurdo quanto o enfrentado pelo jurista Ives Gandra Martins, acusado, sem qualquer fundamento, de suposta incitação a golpe de Estado. O jurista, aos 90 anos, enfrenta desde 2023 uma representação aberta pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH) no Tribunal de Ética e Disciplina da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), sob a alegação de que teria inspirado os atos de 8 de janeiro de 2023 por meio de um e-mail escrito em 2017.

A mesma representação já havia sido analisada pela OAB. Em dezembro de 2023, a 6ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP concluiu que o jurista não cometeu infração. As autoras recorreram, mas a 8ª Câmara Recursal da OAB-SP decidiu manter o julgamento sem sequer analisar o pedido de recurso, arquivando o caso em fevereiro deste ano por considerar que o recurso foi apresentado fora do prazo. Mais uma vez, a ABI e o MNDH recorreram, e o caso voltou a julgamento. Nesta semana, um pedido de vista apresentado por um dos conselheiros da OAB-SP suspendeu a análise do novo recurso.

O respeito ao debate constitucional – ainda que envolva interpretações complexas e sensíveis – é condição essencial para a preservação da democracia. Transformar juristas em réus por suas ideias é repetir os vícios dos regimes autoritários, que perseguiam pensamentos

A fantasiosa representação contra Gandra baseia-se em um documento encontrado no celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O documento é, na verdade, uma troca de e-mails ocorrida em 2017, na qual o advogado, conhecido por seu profundo saber constitucional, foi procurado por um major do Exército para responder a questões sobre a “elucidação jurídica do que caracteriza a garantia dos poderes constitucionais”. Em sua resposta, Gandra apresentou uma interpretação técnica sobre o artigo 142 da Constituição Federal, semelhante à publicada em um livro de 2014 escrito por ele e outros autores em homenagem ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes.

Em nenhum momento Gandra trata ou defende uma ruptura da ordem institucional. Em sua intensa produção intelectual, que inclui artigos de opinião, análises acadêmicas e livros, o jurista sempre defendeu com firmeza o respeito à Constituição, jamais tendo se posicionado a favor de uma ruptura do Estado Democrático de Direito. Ainda que algumas pessoas possam, de fato, ter se apropriado da interpretação de Gandra e a utilizado – seja por ignorância, seja por má-fé – para defender uma absurda intervenção militar após a eleição de Lula, é ridículo querer impingir ao jurista qualquer responsabilidade pelo lamentável episódio do 8 de janeiro. Só uma falta extrema de bom senso e sensibilidade justificaria tal aberração.

A perseguição a Ives Gandra – não há outra forma de nomeá-la – é reflexo de uma atmosfera de histeria coletiva, na qual ideias e interpretações legítimas são constantemente alvo de tentativas de criminalização. Essa atmosfera é alimentada, em parte, pela atuação desastrosa do Judiciário brasileiro no episódio do 8 de janeiro. Como já mencionamos outras vezes neste espaço, aquele foi um acontecimento de extrema gravidade que, se devidamente punido, poderia ter servido para reforçar na sociedade a importância de defender a democracia em sua totalidade. No entanto, transformou-se em pretexto para que liberdades e garantias democráticas fossem ainda mais agredidas no país.

Uma acusação tão esdrúxula quanto a enfrentada por Ives Gandra – de que uma interpretação técnico-jurídica feita em 2017 incitou uma suposta tentativa de golpe em 2023 – só poderia prosperar em um ambiente em que o respeito à liberdade de pensamento e opinião é constantemente escamoteado sob o pretexto da defesa da democracia. Ironicamente, esta só pode existir plenamente em um contexto onde reine a liberdade de expressão e opinião.

Que haja entidades ou grupos dispostos a distorcer um estudo jurídico sobre norma constitucional, realizado por um professor de Direito, para transformá-lo em pseudo-base teórica de um golpe de Estado não surpreende. Mas que a OAB – cuja missão é zelar pela advocacia e pela integridade do Direito – se preste ao papel de acolher representações tão descabidas, ainda mais contra um homem como Gandra, com quase 70 anos de vida dedicados ao Direito e à defesa da democracia, é inaceitável. Seu legado de inestimável saber jurídico não pode ser manchado por uma perseguição que afronta a própria razão de ser da OAB.

A Ordem não pode se curvar a servir de instrumento de perseguição, atendendo a investidas de quem tenta subverter a ordem jurídica em nome de seus próprios interesses. Ives Gandra não pode continuar sendo constrangido a se explicar por suas interpretações – que são absolutamente legítimas concorde-se ou não com elas. Cabe à OAB, como instituição responsável por zelar pela advocacia e pelo livre exercício do pensamento jurídico, reconhecer o erro de admitir representações infundadas como a movida contra Ives Gandra Martins.

O respeito ao debate constitucional – ainda que envolva interpretações complexas e sensíveis – é condição essencial para a preservação da democracia. Transformar juristas em réus por suas ideias é repetir os vícios dos regimes autoritários, que perseguiam pensamentos. Defender Gandra é defender o direito de pensar livremente, de interpretar a Constituição e de contribuir com o pensamento jurídico nacional sem medo de represálias. A democracia não se sustenta sem liberdade, nem o Direito sem independência.

Fonte: Por Gazeta do Povo

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