Editorial - O julgamento do Marco Civil no STF e o Brasil sob o risco da censura

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Editorial - O julgamento do Marco Civil no STF e o Brasil sob o risco da censura


(Foto: Gustavo Moreno/STF)

Porto Velho, RO
- O Supremo Tribunal Federal retoma nesta quarta-feira (4) um julgamento de imenso impacto para a democracia brasileira e, em particular, para a liberdade de expressão no país – já tão fragilizada por decisões e tendências recentes do próprio Judiciário. Ainda que a gravidade da situação possa parecer exagerada para alguns, o que está em jogo é a possível declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, pilar de proteção à livre circulação de ideias no ambiente digital. O dispositivo trata da responsabilização das empresas de tecnologia, como as plataformas de redes sociais, por conteúdos publicados por terceiros. A depender do que decidirem os ministros, qualquer postagem poderá, na prática, ser alvo de censura.

O Marco Civil da Internet, promulgado em 2014, foi saudado como um avanço institucional. Estabeleceu diretrizes claras e equilibradas para o funcionamento das plataformas digitais, reconhecendo o papel central da internet como espaço de debate público. O artigo 19, em especial, consagrou uma lógica razoável: só há responsabilização judicial quando a empresa ignora uma decisão que determina a retirada de conteúdo ofensivo. Essa exigência de intervenção do Judiciário visa impedir que pressões individuais ou políticas transformem as redes sociais em ferramentas de censura privada – situação que, sem o amparo da lei, poderia ocorrer com frequência alarmante.

O ambiente digital, que deveria ser uma arena vibrante de troca de ideias, corre o risco de ser transformado em um palco estéril, onde só se ouve aquilo que agrada aos que estão no poder

Ao formular o artigo 19 do Marco Civil, o legislador teve a clara intenção de proteger o discurso livre – inclusive, e principalmente, o discurso incômodo, o contraditório, o crítico. Obrigar a obtenção de uma decisão judicial antes da retirada de conteúdo é uma salvaguarda contra a tentação, tão comum nos tempos atuais, de rotular como “ofensivo” ou “desinformativo” aquilo que simplesmente desafia o pensamento ou incomoda. Sem essa garantia legal, qualquer indivíduo ou autoridade poderia pressionar as plataformas a remover postagens legítimas por meio de notificações extrajudiciais, instaurando uma cultura de silenciamento seletivo.

Por outro lado, há casos em que a necessidade de decisão judicial pode levar à demora na retirada de conteúdos danosos e o Marco Civil reconhece isso ao estabelecer duas exceções em que postagens podem ser removidos sem decisão judicial: nos casos de divulgação de nudez ou sexo sem consentimento e em violações de direitos autorais. Os próprios autores da lei deixaram claro que essas hipóteses excepcionais, que exigem uma ação mais célere, poderiam ser ampliadas conforme o entendimento do Legislativo – e certamente é razoável que assim seja. Não há qualquer problema em o Congresso discutir e incluir no Marco Civil, por exemplo, a necessidade de as plataformas retirarem do ar, após notificação extrajudicial, postagens relacionadas à privacidade ou ainda, em pouquíssimas situações, como a da pornografia infantil, adotarem o chamado dever de cuidado, retirando postagens de forma automatizada.

Mas é extremamente preocupante a possibilidade de incluir entre essas exceções e impor o dever de cuidado das plataformas a outras situações, como os crimes contra o Estado de Direito ou os “ataques à democracia”, categoria que, além de imprecisa, pode ser interpretada de modo a abranger críticas legítimas ao governo, ao processo eleitoral, ao próprio STF e aos seus integrantes. Nessas situações, o melhor modelo continua a ser o atual, que demanda uma decisão judicial para que a postagem seja excluída.

O debate sobre o Marco Civil da Internet sequer deveria ocorrer no âmbito do STF. A função de reescrever leis – ainda que sob o pretexto do controle de constitucionalidade – não cabe ao Judiciário, mas sim ao Legislativo. Se o Marco Civil da Internet precisa ser reformulado para se adequar às novas realidades do mundo digital – e não há problema algum nisso –, essa discussão deve ocorrer no Congresso, com ampla participação da sociedade civil, e não por decisão de um tribunal.

Caso o STF decida, de fato, pela inconstitucionalidade do artigo 19 – até o momento, três ministros votaram pela inconstitucionalidade total ou parcial do artigo 19, sinalizando clara disposição para ampliar a responsabilização das plataformas – o efeito prático será o aprofundamento de uma lógica de censura difusa nas redes. Receosas de punições e processos, as plataformas adotarão posturas preventivas, apagando antecipadamente qualquer conteúdo que possa ser interpretado como ilegal – mesmo que tal interpretação seja vaga, duvidosa ou politicamente motivada. Esse comportamento já foi observado em países com legislações mais restritivas, e o resultado é previsível.

Críticas a políticos, governos e instituições; revelações de fatos verdadeiros, porém incômodos; discussões sobre temas sensíveis ou controversos – tudo isso poderá desaparecer das redes sociais. O ambiente digital, que deveria ser uma arena vibrante de troca de ideias, corre o risco de ser transformado em um palco estéril, onde só se ouve aquilo que agrada aos que estão no poder. A liberdade de expressão será reduzida à repetição de consensos superficiais, e o espaço público será esvaziado de conteúdo crítico.

Tal cenário é incompatível com qualquer sociedade verdadeiramente livre. A censura, mesmo disfarçada de zelo institucional, é sempre autoritária – e a democracia não pode conviver com ela. Se o STF vier a derrubar o artigo 19 e a estabelecer novas normas que limitem o debate público nas redes, será imprescindível uma resposta imediata do Congresso e da sociedade civil. A defesa da liberdade de expressão não é uma causa corporativa das big techs – como se tenta fazer parecer –, mas uma batalha decisiva pelo direito de cada cidadão brasileiro de se manifestar, discordar, informar e debater nas redes sociais. Está em jogo não apenas a regulação das plataformas, mas o próprio futuro da liberdade de expressão no Brasil.

Fonte: Por Gazeta do Povo

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