Editorial - Um julgamento previsível em um processo duvidoso

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Editorial - Um julgamento previsível em um processo duvidoso

O ex-presidente Jair Bolsonaro, que começa a ser julgado nesta terça-feira, 2 de setembro. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil).

Porto Velho, RO
- Nesta terça-feira, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal dará início ao que já pode ser considerado o julgamento mais previsível da história recente da corte: aquele em que o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus serão julgados por uma suposta tentativa de golpe de Estado (entre outros crimes) no fim de 2022, após o resultado da eleição presidencial de outubro ter apontado uma vitória apertada de Lula contra Bolsonaro, que tentava a reeleição.

A condenação é certa, mas a certeza existe pelos piores motivos possíveis. Vários ministros do Supremo, tanto os que farão parte do julgamento quanto os que não compõem a turma (e é de se questionar por que um caso tão importante não está sendo avaliado por todo o plenário), têm se manifestado livremente fora dos autos, dando suas opiniões sobre o inquérito, sobre a suposta tentativa de golpe, e antecipando conclusões, às vezes atenuando suas palavras com um ou outro condicional, para que não fique tão escancarado assim o fato de que a decisão, no fim das contas, já está tomada, independentemente do que argumentem os advogados de defesa. A indiscrição é tanta que já se sabe até mesmo o destino do ex-presidente: o presídio da Papuda, segundo fontes próximas ao relator Alexandre de Moraes ouvidas pelo site Metrópoles.

O golpismo só pode ser combatido dentro da lei, mas o que o STF tem feito é relativizar todas as leis em nome de uma suposta “preservação da democracia”

Chega a ser assombroso que a opinião pública, em peso, tenha normalizado esse tipo de atitude, que em nada condiz com a imparcialidade que se esperaria dos responsáveis por julgar pessoas e casos desta relevância. Mas, a bem da verdade, essa normalização não surpreende, depois de tudo o que já vimos ao longo deste processo e que também foi tratado como coisa pouca. Um caso escandaloso é a violação grotesca do princípio do juiz natural, já que nenhum dos réus tem prerrogativa de foro – é preciso lembrar que por muito menos a Lava Jato foi praticamente toda desmontada, inventando-se um problema de competência onde ele não existia, enquanto agora é evidente que o caso deveria estar na primeira instância, e não no STF.

Quando um processo começa com esse tipo de vício, não surpreende que tudo o mais siga padrão semelhante. A prisão domiciliar decretada por Moraes contra Bolsonaro, por exemplo, é uma bizarrice processual, pois ela é não é um tipo de prisão, como a prisão temporária ou preventiva, mas uma maneira específica de cumprir a prisão preventiva ou a pena propriamente dita – e nenhuma delas chegou a ser imposta a Bolsonaro. Diga-se o mesmo de todas as idas e vindas da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, pilar da acusação. Mesmo com as ameaças de Moraes a Cid (e sua família) plenamente documentadas, assusta que sejam tão poucos a apontar para a fragilidade de uma delação feita em tais condições.

Por fim, nunca é demais lembrar que, salvo algum novo elemento tirado da cartola pela Procuradoria-Geral da República aos 49 minutos do segundo tempo (o que já seria muito questionável), estamos diante de um crime que, se existente, não passou da fase dos atos preparatórios, a segunda fase do chamado iter criminis, que consiste em cogitação, planejamento, execução e consumação. Bolsonaro e os demais réus podem ter discutido um golpe, podem ter planejado um golpe, podem até ter redigido documentos para usar em caso de golpe, mas não houve quartelada. Minutas jamais saíram das gavetas e tanques jamais saíram dos quartéis. Lula tomou posse como previsto. E aqui está o grande problema que os ministros, ao que tudo indica, não estarão dispostos a enfrentar: a lei brasileira não pune crimes que não passaram da fase dos atos preparatórios; é preciso haver pelo menos a tentativa, ainda que mal-sucedida, e tentativa não houve – muito menos com “violência e grave ameaça”, requisitos presentes na definição legal de tentativa de golpe e tentativa de abolição do Estado de Direito.

Desde o surgimento dos acampamentos diante dos quartéis das Forças Armadas, em novembro de 2022, reconhecemos que havia, sim, um animus golpista entre muitas pessoas indignadas com o resultado da eleição, desejosas de que os militares “virassem a mesa” para garantir Bolsonaro no poder ou, pelo menos, realizar novas eleições. As investigações mostraram que esse animus estava presente também em altos círculos do poder em Brasília. Isso é sumamente grave e revela um forte déficit democrático entre brasileiros, seja o cidadão comum, seja uma autoridade. Mas também insistimos – e o temos feito especialmente desde a deflagração da Operação Tempus Veritatis – que o golpismo só pode ser combatido dentro da lei. É exatamente o que não foi feito: o STF nega aos réus o direito ao juiz natural, impõe medidas cautelares abusivas e sem base legal, realiza pesca probatória, usa delações obtidas em circunstâncias que as deslegitimam, e torna quase certa a condenação por um crime não tentado. Quem acredita que vale absolutamente tudo para “preservar a democracia” já a destruiu, queira ou não.


Fonte: Por Gazeta do Povo

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