Lula em 2018, no comício que fez antes de se entregar à Polícia Federal, e Bolsonaro em setembro deste ano, durante saída autorizada da prisão domiciliar para atendimento médico (Foto: EFE/ Sebastião Moreira (Lula) e André Borges (Bolsonaro) )Porto Velho, RO - A prisão de Jair Bolsonaro trouxe de volta o debate sobre discrepâncias no tratamento judicial dispensado a ele e ao presidente Lula, quando o petista foi alvo de ações e acabou preso em Curitiba.
As diferenças começam no caminho que cada investigação seguiu. Enquanto Lula foi processado e condenado em primeira instância durante a Operação Lava Jato, com direito a recursos em todas as esferas, Bolsonaro teve seu caso concentrado diretamente no STF — e sob relatoria de um único ministro, Alexandre de Moraes.
Mas as diferenças vão além do andamento das acusações. Os prazos concedidos às defesas, as condições de custódia, a forma de lidar com os apoiadores e até mesmo as restrições impostas durante os processos apresentam contrastes significativos entre os dois casos.
Para entender o que diferencia o tratamento dado a Lula e Bolsonaro, a Gazeta do Povo ouviu a jurista Katia Magalhães, especialista em responsabilidade civil, e Vinicius Marins, professor de Direito e Gestão Pública da Fundação Dom Cabral.
Eles analisaram oito pontos centrais das situações envolvendo os dois políticos e afirmam: no caso de Bolsonaro, os argumentos adotados apresentam fragilidades e podem indicar um viés de perseguição política. Veja a seguir.
1. Direto no STF
O processo de Jair Bolsonaro não passou pela primeira instância e foi direto para o STF, o que os especialistas ouvidos pela reportagem consideram uma violação ao “princípio do juiz natural” (regra que determina que cada caso seja julgado pelo juiz previamente definido em lei).
“A tramitação do caso Bolsonaro no STF fere o princípio do juiz natural, já que, por ocasião do principal evento ensejador do processo [do 8 de janeiro], o ex-presidente não possuía mais foro privilegiado”, afirma Katia Magalhães.
Segundo ela, Bolsonaro “deveria ter sido investigado, processado e julgado em primeira instância, até mesmo para que pudesse manejar todos os recursos cabíveis contra decisões desfavoráveis”.
2. Sem segunda instância
Ao ser julgado diretamente pelo STF, Bolsonaro ficou sem acesso ao duplo grau de jurisdição [direito de ter a decisão revista por um tribunal superior]. Lula, por ter sido processado em primeira instância, conseguiu recorrer ao TRF-4 (Tribunal Regional Federal que funciona como segunda instância para os estados do Sul).
Na visão de Vinicius Marins, foi retirado de Bolsonaro um direito garantido a Lula: o “de ter fatos e provas revisados por tribunais intermediários”.
Condenado pela Primeira Turma do STF em setembro, Bolsonaro teve o trânsito em julgado [quando não há mais possibilidade de recurso] declarado pelo ministro Alexandre de Moraes nesta segunda-feira (24), apesar de a defesa argumentar que ainda caberiam embargos infringentes [medida cabível em decisões não unânimes para tentar reverter a condenação]. Moraes determinou o início imediato do cumprimento da pena na terça (25).
3. Habeas corpus proibido
Por ser julgado pelo STF, Jair Bolsonaro não pode usar habeas corpus (recurso para contestar prisões consideradas ilegais) contra decisões dos ministros.
Katia explica: “Como, na forma da Súmula 606 do próprio STF, é inadmissível habeas corpus contra decisões de ministros ou de turmas do Supremo, Bolsonaro não pode nutrir expectativa razoável de lançar mão desse remédio constitucional para pleitear sua liberdade”, completa.
4. Velocidade prejudicou a defesa
O processo contra Bolsonaro correu de forma incomum, com grande volume de provas e pouco tempo para análise. A Lava Jato, em comparação, durou anos e deu amplo prazo para contestação.
“A celeridade observada nos inquéritos contra Bolsonaro sugere um ‘atropelo processual’ incompatível com a complexidade das causas, ferindo a ampla defesa”, diz Marins. Para ele, isto é “algo que não se viu no tratamento cauteloso dispensado aos recursos da defesa petista.”
5. Prazos insuficientes
A defesa de Jair Bolsonaro recebeu volumes gigantescos de provas digitais com prazos de, no máximo, 48 horas para análise. A de Lula teve condições bem diferentes.
De acordo com Katia Magalhães, o petista “foi acusado com base em provas materiais que seus advogados puderam contrapor em diversas instâncias, dentro dos prazos estipulados em lei”.
Já Bolsonaro, ela diz, “foi assolado por um calhamaço de provas da PGR [Procuradoria Geral da República] que a defesa sequer teve tempo hábil de examinar”.
6. Pena sem “culpa formada”
Lula foi levado para Curitiba depois de receber a condenação em segunda instância. Bolsonaro, por outro lado, enfrenta prisão preventiva (medida excepcional aplicada antes do fim do julgamento) — a prisão se converteu em cumprimento de pena após o STF declarar o trânsito em julgado nesta segunda-feira.
“Lula foi preso somente após condenação colegiada confirmada pelo TRF-4, e ainda assim o STF mudou seu entendimento para soltá-lo, exigindo o trânsito em julgado definitivo [quando não há mais possibilidade de recurso] em nome da presunção de inocência”, diz Vinicius Marins.
No caso de Bolsonaro e seus aliados, ele afirma, “utiliza-se a prisão preventiva de forma extensiva, baseada em ‘garantia da ordem pública’ e riscos hipotéticos, funcionando na prática como uma antecipação de pena sem culpa formada”.
7. Atos de terceiros
O STF considerou a mobilização de apoiadores como fundamento para manter Bolsonaro preso — Moraes classificou eventos como a vigília de oração convocada pelo senador Flávio Bolsonaro como “manifestações populares criminosas” e “reuniões ilícitas”. Para os especialistas, isso equivale a responsabilizar alguém por atos de terceiros.
“A mobilização dos apoiadores de Bolsonaro decorreu do exercício legítimo das liberdades de credo e de associação, ambas chanceladas como garantias fundamentais da Constituição”, afirma Katia Magalhães.
A jurista ainda lembra que “Lula, após a condenação em segunda instância e já expedido o mandado de prisão, passou dias cercados por sindicalistas e clérigos, bradando contra a tramitação de seu processo e contra todo o sistema judiciário do país”.
8. “Morte civil”
Bolsonaro teve sua comunicação limitada — uma medida que não consta na lista de restrições cautelares previstas em lei e tampouco foi aplicada a Lula.
“Mesmo preso, Lula enviava cartas, recebia visitas políticas e articulava os rumos do PT, mantendo sua voz ativa”, lembra Vinicius Marins.
“Bolsonaro, em liberdade, sofre proibição de contato com o presidente de seu partido, retenção de passaporte e vedação ao uso de redes sociais. São medidas de morte civil”, afirma.
Fonte: Por Omar Godoy


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