História - Júlio de Castilhos: a figura esquecida que une Dilma e Bolsonaro

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História - Júlio de Castilhos: a figura esquecida que une Dilma e Bolsonaro


Júlio de Castilhos: O Castilhismo se opõe à ideia de que é preciso haver um equilíbrio de forças na sociedade, com oposição e alternância de poderes| Foto: Reprodução

Porto Velho, RO - A República brasileira nasceu sob o signo do Positivismo, a doutrina autoritária e cientificista desenvolvida pelo francês Augusto Comte e que, fora do Brasil, não foi mais do que um modismo passageiro. Esta é a metade mais conhecida da história. Mas a outra metade, pouco mencionada, é que o Positivismo brasileiro ganhou sua versão própria no Rio Grande do Sul, e que de lá é possível traçar uma linha contínua desde Getúlio Vargas, passando pelo regime militar, até Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro.

O livro mais importante sobre a influência de Castilhos foi escrito pelo professor Ricardo Vélez Rodríguez, que viria a ser o primeiro ministro da Educação no governo de Jair Bolsonaro. Em “Castilhismo: Uma Filosofia da República”, ele explica que o Positivismo que chegou ao Brasil se dividiu em duas correntes: uma, mais "suave", apostava na educação. A outra defendia uma imposição de cima para baixo. Seu mais destacado defensor foi Júlio de Castilhos, um dos primeiros governadores do Rio Grande do Sul.

Nascido durante o Império, em 1860, Castilhos acompanhou de perto as convulsões que geraram a queda da monarquia e, depois, os turbulentos anos iniciais da República. Na verdade, ele foi um dos causadores da turbulência.

O Castilhismo se opõe à ideia de que é preciso haver um equilíbrio de forças na sociedade, com oposição e alternância de poderes. Fiel aos fundamentos do Positivismo de Augusto Comte, os castilhistas repudiam o liberalismo e acreditam que é possível encontrar uma verdade científica sobre a forma ideal de se administrar uma sociedade (qualquer sociedade, já que esses seriam princípios universais). Por isso, na visão deles, não faz sentido dar espaço a visões divergentes. Pelo contrário: é preciso suprimi-las e dar poder à elite (composta, claro, pelos próprios castilhistas). Júlio de Castilhos chamava Comte de “o Grande Mestre”. O professor Antônio Paim, um dos principais historiadores brasileiros, definiu o castilhismo como “o núcleo antidemocrático das ideias de Comte”.

O encontro com o Positivismo

Nascido em uma fazenda no Rio Grande do Sul, Castilhos estudou direito na Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, e lá teve contato com as ideias positivistas e republicanas, num momento em que o Império se tornava mais contestado entre as elites. O fundador do Castilhismo acreditava que a vitória do regime republicano era "fatal" e "incontestável", não menos certeira do que as leis das ciências naturais.

“Os espíritos educados nas verdades da ciência moderna entendem os fenômenos sociais, não como meros produtos do acaso ou de uma Providência desconhecida, mas sim regidos por leis naturais cuja ação a vontade humana é impotente para desviar, como o é, em relação às do mundo físico, e estudam e compreendem a História como a representação dessas leis”, escreveu ele, ainda jovem, no seu jornal A Evolução. O próprio nome do periódico demonstrava que, para Castilhos, a política progredia como a da evolução de Darwin: era inútil tentar se opor a ela.

De volta ao Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos envolveu-se no movimento republicano local. Apesar de sua tendência autoritária — que, de acordo com relatos da época, fazia jus ao seu temperamento severo — Castilhos defendia algumas propostas avançadas para a época. Entre elas, a liberdade religiosa e a abolição da escravidão. Mas sua principal característica era o radicalismo. Poucos meses antes da queda da monarquia, ele assinou um manifesto de republicanos gaúchos que defendia a possibilidade de luta armada para derrubar o regime antes que um eventual terceiro reinado tivesse início (Dom Pedro II, a esta altura, já estava envelhecido e com a saúde frágil).

Distante dos acontecimentos da capital do país, Castilhos não participou diretamente da derrubada da monarquia em novembro de 1889, mas aderiu de imediato e atuou para convencer as elites gaúchas a fazer o mesmo. No governo provisório que surgiu, foi nomeado Secretário do Governo Estadual do Rio Grande do Sul. Em fevereiro de 1890, foi ele mesmo nomeado vice-governador. No ano seguinte, foi nomeado para uma lista tríplice encarregada de escrever uma Constituição para o Estado.

Na prática, Castilhos liderou o processo quase que sozinho, apoiado pelos seus correligionários. Por ser uma fronteira ainda não consolidada, o Rio Grande do Sul tinha, proporcionalmente, o maior número de militares entre as províncias. E os militares pareciam ter um apreço especial pelas ideias positivistas, o que facilitou a propagação dessa doutrina entre os gaúchos.

A Constituição Estadual de 1891 é documento que mais reflete as ideias castilhistas. Já no preâmbulo, o ideal positivista aparece: a Constituição é promulgada em nome da “Família, da Pátria e da Humanidade”.

A partir dali, o Estado teria um presidente com amplos poderes. Pelo texto elaborado por Castilhos e aprovado pela Assembleia do Estado, o poder Legislativo perdia quase todas as suas funções. Os parlamentares, que se reuniriam apenas de 20 de setembro a 20 de novembro, se limitariam a aprovar o Orçamento definido pelo Executivo. As leis seriam todas impostas pelo Executivo. Juízes e promotores também seriam indicados pelo presidente.

“Ao presidente do Estado compete a promulgação das leis”, dizia a Constituição, que vigorou por 44 anos. Funcionava assim: o presidente do estado apresentava um projeto de lei. Ele enviava o texto aos "intendentes municipais" — o equivalente aos prefeitos da época. Eles podiam apresentar sugestões de modificação. O presidente decidia se as aceitava ou não. E a lei entrava em vigor. O Legislativo nada podia fazer.

No mesmo ano, o governo federal nomeou Castilhos para a presidência do Rio Grande do Sul.

Contestado pelos opositores federalistas (defensores de um regime mais próximo de uma democracia liberal), ele chegou a renunciar, pressionado. Mas reassumiu o cargo pouco tempo depois e redobrou a perseguição a seus opositores. Os federalistas reagiram e iniciou-se uma violenta guerra civil. De um lado, os “maragatos” (federalistas). De outro, os “chimangos” (castilhistas). O conflito deixou marcas tão profundas que até hoje é rememorado nos lenços vermelhos (maragatos) e brancos (chimangos). A guerra causou cerca de 10 mil mortes, se estendeu por Santa Catarina e Paraná e gerou cenas tenebrosas. Por mais de uma vez, soldados dos dois lados degolararam prisioneiros adversários.

Castilhos passa o bastão

Em 1898, Castilhos deixou o cargo e, bem ao modo castilhista, escolheu o próprio sucessor: Antônio Augusto Borges de Medeiros, um fiel aliado. Borges de Medeiros, que governou por 16 anos (com um intervalo durante o qual o estado foi presidido por Carlos Barbosa Gonçalves), deixou o poder em definitivo em 1928. Quando chegou a hora de escolher seu sucessor, ele indicou Getúlio Vargas. Não foi uma escolha ao acaso.

O pai de Getúlio, o general Manuel Vargas, era amigo de Júlio de Castilhos e um positivista entusiasmado —- tanto ele quanto dois de seus filhos foram membros da Igreja Positivista do Brasil, uma espécie de religião que cultua a “Humanidade” em vez de Deus, e que ainda hoje possui templos em Porto Alegre e no Rio de Janeiro.

Em 1930, ainda como governador, Vargas disputou a eleição presidencial — e perdeu. Mas, meses depois, ele chegou ao poder pela força, naquela que viria a ser conhecida como a Revolução de 1930. Foi a transposição do método castilhista para o governo federal. Não que a República Velha, comandada por Minas e São Paulo, fosse um modelo de democracia. Mas o regime de Vargas transformou um sistema imperfeito em uma ditadura, ao apostar no autoritarismo e na centralização como método de governo. Seu governo, especialmente após o golpe do Estado Novo em 1937, foi caracterizado pelo menosprezo pela oposição e um nacionalismo exacerbado que concentrava poder nas mãos dos “iluminados”. Foram quinze anos ininterruptos no poder.

A Constituição getulista de 1937 estabelecia que o Parlamento reunia-se quatro meses por ano. No recesso do Parlamento (ou seja, oito meses por ano), podia governar por decretos-leis, modificando inclusive a própria Constituição. O texto também permitia ao presidente da República nomear “interventores” nos Estados. Na prática, isso significava que os governadores eram escolhidos pelo presidente. Mesmo quando aprovava leis, o Congresso deveria limitar-se apenas "a regular, de modo geral, dispondo apenas sobre a substância e os princípios". O Executivo era quem decidiria, na prática, sobre como (e se) a norma seria aplicada.

Herdeiros de esquerda e direita

É difícil caracterizar o Castilhismo como de esquerda ou de direita. Castilhos certamente rejeitaria os dois rótulos: via-se como um regime não-ideológico, baseado na certeza cientificista. Talvez por isso, ele deixou herdeiros nos dois lados do espectro político.

Dos cinco ditadores que governaram o país a partir de 1964, três eram nascidos no Rio Grande do Sul (Artur da Costa e Silva, Ernesto Geisel, Emílio Médici). Os outros dois também têm passagens pelo Estado. Tanto o cearense Humberto Castelo Branco quanto o carioca João Batista Figueiredo estudaram no tradicional Colégio Militar de Porto Alegre. Em comum, a aposta em um regime centralizador e tecnocrático, construído sobre a premissa de que o debate de ideias e a alternância de poder não são proveitosos.

Ecos do Castilhismo podem ser encontrados na Constituição de 1967, já sob o regime militar, e no Ato Institucional número 5 (AI-5), que cerceou ainda mais o Congresso. O AI-5 definia que “O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República”. 

Em seguida, o texto define que “Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios”. Ou seja: o Congresso se tornou irrelevante, como o Legislativo gaúcho na época de Júlio de Castilhos.

Na esquerda, a influência de Castilhos também é visível. Leonel Brizola construiu toda a sua vida política sob o guarda-chuva do getulismo. E Dilma Rousseff é fruto do brizolismo. Ela começou sua carreira partidária no PDT gaúcho, que nada mais é do que a reencarnação do PTB de Getúlio Vargas (depois de extinto pelo regime militar, o partido acabou perdendo a sigla e teve de adotar outro nome).

Do outro lado, o jovem cadete Jair Bolsonaro fez toda a sua formação sob o regime militar instaurado em 1964. Não é uma coincidência que ele tenha repetidas vezes replicado o receituário positivista: um Executivo forte, o menosprezo pela oposição e um nacionalismo exacerbado, que se traduz na oposição às privatizações de estatais —- pelo menos até recentemente, quando passou a professar princípios mais próximos do conservadorismo.

No Rio Grande do Sul, o nome de Castilhos não caiu no esquecimento: sua casa, ao lado da Catedral de Porto Alegre a 100 metros do Palácio do Governo e da Assembleia Legislativa, transformou-se um museu.

A praça em frente ao palácio traz um imponente monumento em homenagem ao fundador do Castilhismo. É nessa praça que, em 1961, Leonel Brizola e seus aliados se entrincheirar para defender a posse de João Goulart como presidente da República, após a renúncia de Jânio Quadros. O PTB, de Getúlio, era o partido de João Goulart, cujo pai pegara em armas para defender Borges de Medeiros (o sucessor de Júlio de Castilhos) em (mais uma) guerra civil no ano de 1923. É como se todas as forças políticas do Rio Grande do Sul levassem, direta ou indiretamente, ao positivismo autoritário de Castilhos.

Fora do Rio Grande do Sul, o nome de Júlio de Castilhos é praticamente desconhecido. Não deveria. Nas eleições de 2022, traços da herança castilhista podem encontrados em três dos principais candidatos: um deles é Bolsonaro, indiretamente inspirado pelo receituário castilhista. Outro é Lula, que teve Leonel Brizola como vice em 1998 e viabilizou a chegada de Dilma Rousseff à Presidência. O terceiro é Ciro Gomes, membro do PDT e admirador declarado de Getúlio Vargas.

Júlio de Castilhos foi enterrado há 119 anos no Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre. Mas sua influência continua mais viva do que nunca.

Fonte: Por Gabriel de Arruda Castro

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