‘Devemos ensinar às pessoas como, e não o que pensar’, diz biógrafo do filósofo Diderot

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‘Devemos ensinar às pessoas como, e não o que pensar’, diz biógrafo do filósofo Diderot

Andrew Curran defende que francês foi pioneiro na democratização do acesso ao conhecimento

Porto Velho, RO
- O filósofo Denis Diderot (1713-1784) seria o padroeiro da Wikipedia e, de certa forma, do Google. É o que diz o biógrafo Andrew Curran, professor de humanidades no departamento de francês da Universidade Wesleyan (EUA) e autor de “Diderot e a arte de pensar livremente”, lançado no Brasil pela Todavia.

De fato, Diderot foi pioneiro na democratização do acesso ao conhecimento em larga escala ao publicar os 17 primeiros volumes da “Enciclopédia”, com seus 74 mil artigos (dos quais ele mesmo escreveu mais de sete mil) e 23 mil referências cruzadas (os primeiros hiperlinks da história), uma obra que, além de ser um colossal repositório de ideias, mudou a forma de pensar de sua época.

O título da biografia escrita por Curran não poderia ser mais preciso porque revela o maior atributo de seu biografado: a capacidade de passear por todas as disciplinas, pensando cada uma delas por meio de uma apropriação eficiente do método cético, com o destemor de examinar as ideias sem se deixar afetar por dogmas e verdades absolutas.

O livro propõe uma retomada das ideias do Iluminismo, com foco nos dois eixos centrais do movimento do século XVIII: a liberdade de expressão e o ceticismo. Para Diderot, o ceticismo é um método capaz de nortear o fazer científico e, ao mesmo tempo, uma arma contra o dogmatismo.

— Diderot é o tipo de autor que podemos transformar em nosso amigo. Um amigo cético perfeito para enfrentar o dogmatismo e a brutalidade — diz Andrew Curran em entrevista ao GLOBO.

Por que alguém compraria um livro sobre Diderot?

Quem passa um tempo com Diderot se apaixona por ele. É tão moderno: fala de Deus (ou da falta dele), do significado de amor e sexo, da metodologia científica, dos abusos sexuais no clero, dos direitos dos indígenas, dos abusos do colonialismo e do horror da escravidão.

Ele viveu durante uma época de monarquia e sonhou com o poder da democracia. É uma figura de proa, um parceiro de vida intelectual, um cara engraçado, gênio absoluto.

Vivemos um mundo polarizado em que todos professam verdades absolutas. Em que medida o ceticismo de Diderot pode ser útil hoje?

Não seria ótimo se o mantra de Diderot, “o ceticismo é o primeiro passo em direção à verdade”, fosse ensinado nas escolas? Todo mundo é dogmático. A verdade é empurrada à força, especialmente meias verdades e não verdades. A filosofia é uma grande ferramenta; como Diderot, acredito que devemos tornar a filosofia popular, ensinar às pessoas como (em vez de o que) pensar. É uma arte e uma alegria pensar livremente.

Diderot foi um defensor do pensamento livre no século XVIII. Não é espantoso o atual cancelamento por causa de comentários considerados ofensivos ou impróprios?

Minha geração — tenho 58 anos — não tinha o poder de fazer nossas ideias serem ouvidas. Hoje os jovens conseguem expressar sua raiva nas redes sociais de forma muito eficaz. Pessoas mais velhas também entraram na onda da cultura do cancelamento, é claro. Imagine como seriam os anos 1960 se existissem as redes sociais: teria sido insano, selvagem, e o Vietnã não teria continuado até 1975.

A cultura do cancelamento tem a ver com um novo dogmatismo tanto à esquerda quanto à direita. É uma nova forma de “sinalização da virtude”, segundo a qual existem pessoas boas e más, e estas últimas são excluídas do contrato social, à la Rousseau.

Como explicar tamanho dogmatismo hoje?

Antes, as pessoas faziam coisas boas e ruins, eram julgadas por elas e depois seguiam em frente, a menos que fizessem coisas realmente horrorosas, casos em que eram de fato condenadas ao ostracismo ou enviadas à prisão. Houve certamente outros momentos na História em que o tribunal da opinião pública dividiu as pessoas em virtuosos e viciosos, punindo os que fugiram de determinados padrões. Mas a internet fez isso de uma maneira nova.

Por que o senhor decidiu escrever uma biografia de um dos pensadores mais biografados de todos os tempos?

Escrevi um artigo no jornal The New York Times comemorando seu aniversário de 300 anos e várias editoras me pediram para escrever uma biografia, lançando assim minha carreira como escritor para o grande público. Achava que as outras biografias de Diderot, embora incríveis em vários aspectos, não o tornavam acessível — são para especialistas. Também sou especialista em Diderot (este é o meu segundo livro sobre ele), mas queria fazer um livro que transmitisse seu espírito: ele era brilhante, sedutor e rebelde.

No livro que o senhor acaba de lançar nos Estados Unidos, “Who is black and why?”, há o argumento de que precisamos de uma nova linguagem para falar sobre raça. Pode explicar por quê?

O livro que escrevi em parceria com o acadêmico Henry Louis Gates Jr. é sobre o surgimento do conceito de raça, e para isso resgatamos a história de um fascinante concurso de artigos científicos do século XVIII ao qual centenas de participantes submeteram textos sobre as possíveis causas da cor da pele preta.

O fato é que precisamos confrontar o conceito de raça (foi inventado por volta de 1750) e reconhecer que essas velhas ideias não têm base na biologia ou na ciência, mas suas consequências ainda são sentidas hoje, em São Paulo ou Nova York.

O que acha de o seu livro ser publicado no Brasil?

Passei apenas uma semana no Brasil, achei o país fascinante como os Estados Unidos. Enorme, diversificado, uma fonte de ideias fantásticas, boa comida, arquitetura e música. Nossos legados de escravidão também determinam quem somos. Estou muito honrado por ser publicado no Brasil e espero voltar para falar sobre o livro em algum outro momento.

Fonte: O Globo

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