Pintura do artista José de Ribera (1591–1652) retrata Maria Madalena. (Foto: Reprodução/Wikimedia Commons/Domínio Público)
O dia 22 de julho é marcado no calendário da Igreja Católica como sendo o da festa de Santa Maria Madalena. Na liturgia católica, uma festa é a celebração que vem logo abaixo das solenidades – as mais importantes datas litúrgicas do ano – e acima da memória, que é a celebração de um santo menos conhecido ou importante. A festa é o grau de celebração reservado a vários apóstolos, mártires e a santos muito especiais. Isso expressa claramente o reconhecimento da Igreja em relação a essa importante personagem dos primórdios do cristianismo.
Celebrar Maria Madalena com grau de festa, equiparando-a, de certa forma, aos próprios apóstolos, é uma das maneiras que a Igreja encontrou de fazer jus àquela que foi chamada por Santo Hipólito – padre da Igreja que viveu entre os sécs. II e III – de “Apóstola dos apóstolos”. Tal epíteto surge do fato de ela ter anunciado a ressurreição aos próprios apóstolos, segundo os relatos dos evangelhos.
A parte sobre as interpretações heterodoxas de Maria Madalena ainda discute uma imagem da santa que certamente se encaixaria como uma luva nas expectativas contemporâneas: a da mulher que era líder nos primórdios do cristianismo
Pouquíssimas personalidades da história do cristianismo foram agraciadas com tantas honrarias. Mas reconhecer Maria Madalena como santa, celebrá-la com a mesma importância litúrgica dos apóstolos e perpetuar o epíteto de “Apóstola dos apóstolos” parece ser pouco para parte das sensibilidades do mundo contemporâneo, ávido pelo protagonismo feminino, mesmo que às custas de anacronismos e imposições artificiais.
Nesse sentido, na esteira de certas tendências feministas, Madalena se tornou, ao longo dos sécs. XX e XXI, uma personagem bastante atrativa e que se encaixa muito bem em determinadas expectativas. Tudo isso é alimentado por parte da indústria do entretenimento, influenciadores, youtubers e por dossiês jornalísticos e livros de divulgação, que, muitas vezes, beiram a fraude intelectual.
Surge, então, a Maria Madalena que se distancia da história e que se aproxima da lenda, para, então, se transformar em mito. A Maria Madalena que lutou contra o patriarcado, personificado nos apóstolos e na Igreja. Ou a Madalena que foi transformada em prostituta pelo papado, que temia o protagonismo feminino. Ou ainda, a Maria Madalena que foi esposa de Cristo e com ele gerou filhos. Não deixa de ser pitoresco, inclusive, que esta última lenda, travestida de verdade e pesquisa histórica, tenha gerado centenas de milhões em lucro para diversos setores da indústria do entretenimento, entre idas e vindas, seja na literatura, seja no cinema.
E é neste momento que o historiador do cristianismo deve intervir; ele sim, quando faz um trabalho sério e profissional, é o especialista no assunto, e não o jornalista, o influencer ou o youtuber. É o historiador que deve tentar mostrar aquilo que é história e aquilo que é lenda. E foi isso que eu e meu colega João Carlos Nara Jr – autores do livro Madalena: a Apóstola dos apóstolo através dos séculos – tentamos fazer: mostrar aquilo que de fato se sabe sobre Maria Madalena e aquilo que foi dito sobre ela ao longo dos séculos, fruto de interpretações e recepções ditados e influenciados pelos mais diversos contextos.
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De fato, o que realmente se sabe sobre Maria Madalena é muito pouco e nos foi legado por alguns relatos – muitas vezes lacônicos – dos Evangelhos. Sabemos que ela foi a mulher da qual Jesus expulsou 7 demônios (Lc 8, 2), que ela acompanhava e ajudava Jesus no seu ministério (Lc 8, 2-3), que ela esteve aos pés da cruz (Mt, 27, 55; Mc 15, 40; Jo 19, 25) e que foi a primeira testemunha da ressurreição (Jo 20, 1-17), anunciando-a aos próprios apóstolos (Jo 20, 18). Tudo aquilo que foi dito sobre ela ao longo da história além disso não é diretamente atestado pelos evangelhos.
Tão poucas e concisas informações não impediram que muita coisa suplementar fosse falada e especulada sobre ela e ainda, que muitas interpretações fossem feitas em relação a ela ao longo dos séculos. No livro, nós, os autores, dividimos o que foi dito sobre Madalena que não é atestado pelos evangelhos em dois grupos: as interpretações ortodoxas (no sentido de que não se opõem ao Magistério e à doutrina da Igreja) e as heterodoxas (no sentido de serem lendárias demais, ou de se oporem ao Magistério e à doutrina da Igreja ou de serem fruto da ficção contemporânea). No primeiro grupo, encontram-se as interpretações feitas pelos Padres da Igreja e santos. No segundo, relatos apócrifos, heréticos e ficcionais.
A essa altura, seria normal que o leitor estivesse fazendo ponderações do tipo “mas Maria Madalena não era prostituta?” ou “não foi ela a mulher quem ungiu os pés de Jesus em Betânia?” ou ainda “a mulher adúltera que iria ser apedrejada não era Maria Madalena?”. Nada disso é dito nos evangelhos e sequer pode ser atestado pelo contexto e fontes documentais imediatamente posteriores à época de Jesus e Madalena. Algumas dessas informações são, inclusive, surpreendentemente tardias.
Aparecem, muitas vezes, em escritos, especulações ou exegeses de Padres da Igreja ou de santos de outras épocas. Apesar de ser difícil de serem atestadas, estas interpretações e especulações sobre Madalena não são contrárias ao Magistério e à doutrina da Igreja e o leitor pode encontrar mais detalhes sobre suas origens na primeira parte do livro.
Preocupantes, no entanto, são as especulações e interpretações que se opõem ao Magistério da Igreja. A mais famosa delas é certamente a que diz que Jesus e Maria Madalena tiveram um relacionamento conjugal e chegaram a ter filhos. Talvez, o leitor se lembre do sucesso exorbitante do Código da Vinci, o romance do estadunidense Dan Brown publicado há mais de 20 anos e que vendeu mais de 80 milhões de cópias, e que ainda gerou uma superprodução hollywoodiana com direito a pré-estreia no festival de Cannes em 2006. Apesar de ser um romance, Dan Brown trabalha com a incapacidade do leitor médio de diferenciar a ficção da realidade, construindo um enredo envolvente no qual ele se utiliza, dentre outras coisas, da interpretação equivocada de textos apócrifos que falam de Jesus e Maria Madalena, tentando dar um ar de historicidade subversiva à sua argumentação.
Mas apesar de seu sucesso estrondoso, o Código da Vinci não foi a primeira obra a falar de um suposto relacionamento conjugal entre Jesus e Madalena. Fruto possivelmente de uma tentativa de humanizar demais Jesus, aliada a uma espécie de provocação implícita ao cristianismo por parte da sociedade em processo de descristianização, a ideia já havia sido trazida à tona por romances, filmes e obras de pseudociência. Mas uma coisa é certa: tal ideia é muito recente e surgiu somente no séc. XX, em uma obra de ficção, para depois ganhar ares de pseudociência. Essa é uma das discussões que o leitor encontrará na segunda parte do livro, repleta de desmistificações.
A parte sobre as interpretações heterodoxas de Maria Madalena ainda discute uma imagem da santa que certamente se encaixaria como uma luva nas expectativas contemporâneas: a da mulher que era líder nos primórdios do cristianismo – talvez até diaconisa ou sacerdotisa – mas que foi silenciada pelo patriarcado, representado pela Igreja. Daí teria surgido a necessidade de “transformar” Maria Madalena numa prostituta, fruto da tentativa do Papado de desacreditá-la e conter o avanço das lideranças femininas. Além de anacrônica, este tipo de interpretação, mais uma vez, encontra apoio na ficção apócrifa e não na análise séria e criteriosa de fontes. Mas, muitas vezes, quem está enfeitiçado por ideologias não se preocupa com a exatidão e veracidade das informações que lhe agradam.
Uma última palavra deve ser dita em relação à maneira como Maria Madalena foi retratada na ficção, mesmo naquelas que podem ser consideradas piedosas e edificantes e que não apresentam um risco à fé do cristão. Produções como a Paixão de Cristo de Mel Gibson e The Chosen, por exemplo, utilizam-se, em diferentes graus, de interpretações que não podem ser atestadas sobre Madalena e ainda da ficção para preencher lacunas e tornar a produção mais atrativa para o público. A Paixão de Cristo, por exemplo, faz de Madalena a adúltera que seria apedrejada e que foi salva por Jesus, mesmo não sendo possível comprovar que fosse esse o caso.
O caso de The Chosen nos parece mais delicado, por conta do uso extensivo e indiscriminado de detalhes ficcionais para preencher a trama. Como dito acima, o leitor – e o expectador – médio muitas vezes é incapaz de diferenciar a ficção da realidade, e isso serve tanto para o bem quanto para o mal. A quantidade de pessoas que vê The Chosen e não sabe mais distinguir o que é pura ficção e o que, de fato, está nos evangelhos é razoável e não pode ser simplesmente negligenciada. Inclusive no tocante à Madalena. Não são raras as vezes em que eu ouvi algo do gênero “tem certeza de que Madalena não fez isso? Mas eu vi no The Chosen”.
O historiador profissional sempre está em desvantagem em relação à literatura, ao cinema e às informações potencialmente bombásticas. Só lhe resta, muitas vezes, trabalhar no modo “contenção de danos”, numa tentativa muitas vezes inútil de separar a história da lenda e do mito.
Julio Cesar Dias Chaves é historiador, doutor em Ciências das religiões pela Université Laval (2018) e professor de História da Igreja do Seminário Arquidiocesano de Brasília. É coautor do livro “Madalena - A Apóstola dos apóstolos através dos séculos” (Cultor de Livros, 2025).
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