Editorial - A força civilizatória do devido processo legal

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Editorial - A força civilizatória do devido processo legal

Devido processo legal inclui o direito à ampla defesa, que os americanos descrevem com a expressão "day in the court". (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

Porto Velho, RO - Dentre as muitas conquistas civilizatórias dos últimos séculos, e que serviram para erguer o que conhecemos hoje como democracia, uma das mais importantes é o que se convencionou chamar de “devido processo legal”. Ele é uma proteção contra os abusos do poder, impedindo que a única regra seja a mera vontade de quem detém posições de autoridade, e garantindo que todos os cidadãos tenham o direito de serem tratados com justiça.

É para garantir o devido processo legal, por exemplo, que existem os códigos processuais, que regulam cada etapa dos processos judiciais, tanto na esfera cível quanto criminal; princípios como o do juiz natural (cada pessoa deve ser julgada pelo juízo competente, na instância correta), do contraditório (todos têm o direito de saber do que são acusados e poder rebater os argumentos da acusação diante da autoridade) e da ampla defesa (ninguém pode ser julgado sem ter todos os meios necessários para se defender) são parte do devido processo legal. E, apesar do nome, ele não se aplica apenas a demandas no Poder Judiciário, mas também a decisões e processos administrativos em órgãos de outros poderes – mais frequentemente, o Executivo.

Se até para receber uma multa de trânsito a autoridade tem de apresentar evidências, como uma imagem de radar ou o relato de um agente, e o motorista tem o direito de recorrer para demonstrar que não foi ele quem cometeu a infração, quanto mais naqueles momentos em que estão em jogo bens como o direito de manifestação, a liberdade ou a própria vida. Todos, até mesmo os maiores facínoras, têm direito ao que os norte-americanos chamam de “day in the court”, o “dia no tribunal”, uma referência à possibilidade de poder se defender de qualquer acusação, sendo ouvido por quem há de tomar a decisão final – seja em um tribunal real, seja em qualquer outra instância governamental.

Nenhuma autoridade pode usar seu poder para perseguir ninguém – nem mesmo criminosos, muito menos simples desafetos – à margem do devido processo legal

Disso tudo podemos concluir que, onde não há devido processo legal, a democracia está morta ou em estado terminal, e a lei é substituída pelo capricho do autocrata e pela perseguição pura e simples. O Brasil atual sob a juristocracia do STF é bom exemplo disso. Apesar de o inciso LIV do artigo 5.º da Constituição afirmar que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, ele foi sumariamente abolido no inquérito das fake news, na repressão aos manifestantes do 8 de janeiro e em vários outros casos correlatos: pessoas são censuradas sem nem saber o que escreveram de “errado” (entre muitas aspas); brasileiros são acusados e condenados por crimes cujo cometimento os órgãos de investigação não foram capazes de comprovar; julgamentos virtuais forçam advogados a gravar sustentações orais, sem garantia nenhuma de que os ministros tenham assistido aos vídeos; centenas de pessoas que deveriam ser julgadas na primeira instância têm seus casos analisados pela suprema corte; ministros tomam decisões de ofício, sem provocação alguma do Ministério Público. O fato de serem tribunais superiores a agir dessa forma não concede um milímetro sequer de legalidade às suas ações; ministros de cortes supremas não estão acima da lei que deveriam proteger e fazer cumprir.

Estamos, portanto, diante de uma questão de princípio. A posição de mando, conquistada seja pela via da eleição, seja pela nomeação, não dá carta branca a ninguém. Nenhuma autoridade pode usar seu poder para perseguir ninguém – nem mesmo criminosos, muito menos simples desafetos – à margem do devido processo legal, ainda que tal perseguição tenha algum verniz de legalidade por seguir certos trâmites formais; quem age assim, independentemente de que posição ocupe no espectro político ou ideológico, merece o repúdio de uma sociedade comprometida com a democracia. E é com preocupação que vemos ameaças sem precedentes ao devido processo legal não apenas no Brasil e em outras autocracias, como a venezuelana, a nicaraguense ou a russa, mas também em outras nações.

Como os brasileiros deveríamos reagir se, de repente, o MEC de Lula determinasse um expurgo sumário de professores e estudantes conservadores, pró-Israel, contrários à ideologia de gênero, ou pró-vida – ou tudo isso ao mesmo tempo? E se obrigasse as instituições de ensino superior não apenas a cortar esses alunos e professores, mas também a “fichá-los” e enviar seus nomes ao governo? E se interrompesse subitamente os repasses às universidades federais cujos reitores se recusassem a seguir tal ordem, e cancelasse contratos de programas como o ProUni com faculdades particulares que discordassem dessa política? E se, em retaliação ao tarifaço de Donald Trump, o MEC determinasse a expulsão de todos os estudantes norte-americanos, afirmando que de agora em diante os únicos estrangeiros com acesso à universidade no Brasil seriam os provenientes de países aliados, como Venezuela, Cuba ou Irã? Não estaríamos diante de um absurdo sem tamanho? Ninguém em sã consciência veria alguma legalidade em qualquer um desses atos insanos, ainda que pudessem agradar a alguns esquerdistas mais fervorosos. Eles constituiriam claras violações aos direitos das universidades – que tradicionalmente possuem certa autonomia – e também aos direitos individuais dos estudantes.

Pois nosso cenário hipotético não é muito diferente da ofensiva que o presidente Donald Trump tem realizado sobre as universidades norte-americanas. A Gazeta do Povo já reconheceu, neste espaço, que há uma “deformação moral” no ensino superior daquele país, onde instituições renomadas toleram até mesmo a defesa do genocídio em manifestações dentro dos câmpus enquanto perseguem professores que “erram” pronomes. Mas o necessário combate ao antissemitismo e aos excessos das políticas de “diversidade, equidade e inclusão” (DEI) não justifica a forma como Trump tem lidado com as instituições, especialmente a Universidade Harvard, que já foi obrigada a enviar os dados de todos os seus alunos estrangeiros, está temporariamente proibida de aceitar novos alunos de outros países, e pode perder todas as verbas federais que recebe atualmente.

Por mais grave que seja o problema do antissemitismo e do identitarismo exacerbado nas universidades, não há espaço para atitudes que não se encaixem no estrito cumprimento do devido processo legal. Nos EUA, o due process of law é uma cláusula constitucional fundamental que se aplica a todas as esferas do governo – Legislativo, Judiciário e Executivo. Além de obrigar que o governo siga procedimentos justos antes de restringir direitos, há limites também às ações do governo que possam violar garantias fundamentais. O governo americano simplesmente é impedido de adotar medidas arbitrárias ou que violem direitos fundamentais, ainda que sob o pretexto de regulamentação administrativa. Isso significa que nem Trump, nem qualquer outro presidente americano pode assinar ordens executivas obrigando as universidades a expulsarem estudantes ou professores que participem de protestos pró-Palestina, por exemplo, nem impedir que alunos de determinados países permaneçam nas universidades, com base apenas em critérios ideológicos ou de nacionalidade. Medidas desse tipo, mesmo que amparadas por boas intenções, esbarrariam imediatamente nos freios constitucionais que protegem a liberdade individual, a igualdade perante a lei e a autonomia institucional.

Não apenas as universidades têm sofrido com este modus operandi de Trump. No início de 2025, o presidente assinou ordens que atingiram importantes escritórios de advocacia norte-americanos, como Covington & Burling, Perkins Coie, Paul Weiss e Jenner & Block. Todas elas envolviam a suspensão de autorizações de segurança – credenciais que permitem acesso a informações classificadas do governo – de advogados e funcionários dos escritórios; no caso da Perkins Coie, Trump ainda proibiu órgãos públicos de contratar a banca e recomendou a empresas que têm contratos com o governo que a evitassem. Em comum, todos os escritórios defenderam ou contrataram desafetos de Trump: a Covington & Burling representa um ex-conselheiro especial do Departamento de Justiça que comandou investigações federais contra Trump; a Perkins Coie representou a campanha de Hillary Clinton em 2016, e alguns de seus ex-advogados estão envolvidos nas acusações de ajuda russa para eleger Trump; um dos ex-advogados da Paul Weiss trabalhou em casos contra Trump; e a Jenner & Block, além de empregar ex-funcionários dos governos Obama e Biden, advoga em ações judiciais que contestam algumas políticas de Trump sobre imigração e transição de gênero.

A estabilidade das democracias depende, em grande medida, da capacidade de seus agentes públicos de respeitarem os limites legais que lhes são impostos

E então precisamos questionar: alguém acharia correto que o governo lulista perseguisse escritórios de advocacia que empregassem, por exemplo, ex-procuradores da Lava Jato que ajudaram a levantar o robustíssimo (e jamais refutado) conjunto probatório contra Lula? Ou que Alexandre de Moraes impusesse punições aos advogados dos réus do 8 de janeiro? Ou, pior ainda, que Lula ordenasse ao Ministério da Justiça que investigasse todos os escritórios que advogaram em ações contra o governo desde 2002? Pois foi exatamente o que Trump fez em março, quando pediu ao Departamento de Justiça que investigasse todos os escritórios que moveram processos contra o governo federal nos últimos oito anos, período que cobre o primeiro mandato de Trump.

É uma questão de coerência: se repudiamos as violações reais do devido processo legal cometidas pelo STF no Brasil, e se repudiaríamos as perseguições hipotéticas a universidades e escritórios de advocacia caso viessem do Supremo brasileiro ou do governo lulista, temos de repudiar tais ações de Trump com a mesma força. Afinal, o que diferencia uma democracia consolidada de um regime autoritário é exatamente o fato de que os governantes, independentemente de suas bandeiras políticas ou intenções, estão submetidos a limites legais e institucionais. O cumprimento estrito do devido processo legal não é apenas o melhor caminho, mas o único possível quando se respeita realmente o próprio Estado Democrático de Direito. Querer atropelá-lo, ainda que com boas intenções, como parece ser o caminho adotado por Trump, é abrir caminho para o autoritarismo e para a falência da democracia. Não é verdade que “aquele que salva seu país não viola lei alguma”, como já escreveu Trump nas mídias sociais; a estabilidade das democracias depende, em grande medida, da capacidade de seus agentes públicos de respeitarem os limites legais que lhes são impostos – sobretudo quando esses limites parecem inconvenientes.

Fonte: Por Gazeta do Povo

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