
O campo progressista ficou em silêncio após Alexandre de Moraes liberar da prisão Chiquinho Brazão, acusado de mandar matar Marielle Franco. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Porto Velho, RO - Chiquinho Brazão está em casa. Acusado de mandar matar a vereadora Marielle Franco (1979-2018), o deputado deixou a Penitenciária Federal de Campo Grande (MS) no último sábado (12) e já cumpre prisão domiciliar com a família, no Rio de Janeiro.
Brazão foi liberado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes — que se baseou num laudo médico e reconheceu o “caráter humanitário” do pedido de mudança de regime apresentado por sua defesa.
A Procuradoria-Geral da República, no entanto, opôs-se à solicitação. Segundo o órgão, o parlamentar sofre de um problema cardíaco crônico, identificado antes de sua detenção. Além disso, recebia a assistência médica necessária na cadeia.
Mas a decisão do STF não é o ponto mais controverso do episódio. Nem o conflito de visões entre a Corte e a PGR. O que chama a atenção é a omissão da esquerda com relação a uma de suas maiores bandeiras nos últimos anos: a justiça para o crime cometido contra a vereadora carioca.
Nenhuma nota do PSOL, partido de Marielle. Nenhum protesto nas redes sociais. Hashtags feministas? Não foram compartilhadas. Tampouco o conhecido lema “Marielle presente”. Alguma referência a Anderson Gomes, motorista da vereadora, morto na mesma emboscada? Nem pensar.
Na imprensa dita progressista, o silêncio também imperou. Até a jornalista Eliane Brum, ícone máximo dos estudantes de Comunicação engajados, mudou de assunto no dia da soltura de Brazão. Logo ela, que durante mais de 2.200 dias consecutivos postou no X a pergunta “Quem mandou matar Marielle?”.
Mesmo a irmã da vítima, a ministra Anielle Franco, chefe da pasta da Igualde Racial do governo Lula, emudeceu. Mas por quê?
Combate ao "grande demônio"
Para o cientista político Fernando Schüler, professor do Insper, a esquerda está calada porque a decisão de mandar Brazão para casa veio justamente do juiz que hoje é referência para seu campo político: o ministro Alexandre de Mores.
“Houve uma priorização do critério ideológico, dado que esse juiz é importante no combate à figura que, para a esquerda, é o ‘grande demônio’ [Jair Bolsonaro]. E criticá-lo pode enfraquecer o maior combatente ao ‘grande demônio’. Logo, não vamos criticá-lo”, diz.
Schüler, no entanto, não vê uma estratégia muito calculada por trás desse posicionamento — para ele, é uma questão de “seletividade” e “afetos identitários”
“Se a prisão do Chiquinho Brazão tivesse sido relaxada por um juiz visto como ‘bolsonarista’, hoje estaríamos vendo uma série de protestos contra ‘esse descalabro’, ‘essa demonstração clara de aparelhamento da justiça'”, afirma.
O tabu da crítica
Comentarista política do programa “Café com Gazeta”, exibido no canal da Gazeta do Povo no YouTube, a advogada Anne Dias também fala em “indignação seletiva”.
“Se é inaceitável que um deputado da extrema direita zombe do assassinato de Marielle, como quando Daniel Silveira quebrou a placa que levava seu nome, também é inaceitável que feministas e parlamentares do PSOL assistam em silêncio à libertação do acusado de ser o mandante do crime”, diz.
Anne ainda destaca que, segundo a Advocacia-Geral da União (AGU), 90% das decisões da Corte têm sido favoráveis ao governo do PT. Ou seja: existe uma “simbiose”, nas palavras dela, entre os poderes Judiciário e Executivo, responsável por criar um ambiente no qual discordar de Alexandre de Moraes virou “quase um tabu”.
“Em um momento em que o ministro acumula acusações de perseguição a opositores e de censura a vozes dissidentes, muitos preferem engolir a incoerência para manter a aliança. Mas, ao fazer isso, sacrificam a coerência política — e com ela, a legitimidade do próprio discurso democrático”, afirma.
"Quem mandou soltar quem mandou matar?"
Essa tendenciosidade vem sendo igualmente apontada por personalidades da direita, que fizeram paralelos entre a soltura de Brazão e a situação dramática dos envolvidos no 8 de janeiro ainda presos em Brasília.
O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) foi além, e lembrou do caso de Cleriston Pereira Cunha, o Clezão, morto após sofrer um mal súbito no Complexo Penitenciário da Papuda.
“Moraes concede prisão domiciliar para Chiquinho Brazão, acusado de mandar matar Marielle, por conta de problemas de saúde. Faço questão de lembrar que Clezão não teve o mesmo direito”, afirmou no X.
Outros influenciadores compararam as temporadas na prisão cumpridas por Brazão e pela cabelereira Débora Rodrigues dos Santos — condenada por pichar, com batom, a estátua da Justiça em frente à sede do STF. Enquanto Débora ficou detida por dois anos, o deputado suspeito de ordenar um assassinato passou pouco mais de um ano na Penitenciária Federal de Campo Grande.
Houve, ainda, quem compartilhou um meme com a imagem estilizada de Marielle Franco acompanhada da pergunta “Quem mandou soltar quem mandou matar Marielle?”.

Ato do PSOL no Rio de Janeiro, em 2024, para pedir justiça por Marielle: uma causa hoje esquecida. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
E Anielle?
A pressão pública para comentar a soltura de Chiquinho Brazão recaiu com mais força na bancada feminina do PSOL — e, principalmente, em Anielle Franco.
No início do ano, a ministra do PT chegou a condenar publicamente o colega de partido Washington Quaquá, prefeito de Maricá, após ele publicar uma foto com familiares de Brazão, de quem é amigo de longa data. Mas, no dia da libertação do deputado (atualmente sem partido), ela se limitou a postar uma mensagem sobre a “luta quilombola”.
Nos bastidores, especula-se que a omissão de Anielle revela outra fragilidade além pacto tácito de não criticar o ministro Alexandre de Moares. Segundo fontes do Planalto, a ministra não está em boa conta com os petistas do núcleo duro de Lula, que avaliam a pasta como “enfraquecida”.
Na semana passada, inclusive, abriu-se uma crise no ministério da Igualdade Racial quando a secretária de Políticas Afirmativas da pasta, Márcia Lima, pediu demissão alegando “falta de autonomia” para trabalhar.
Márcia ainda apontou problemas na comunicação do governo, relacionando-os à grande quantidade de ministérios (38) e à dificuldade de “construção de pautas transversais” — o que, definitivamente, não pegou bem para sua ex-chefe.
A vez do "Sem anistia"
O “esquecimento” da esquerda com relação a Marielle Franco também pode ser atribuído à comprovação de que o ex-presidente Jair Bolsonaro não teve envolvimento em seu assassinato.
“Quando essa narrativa ruiu, o interesse também evaporou. O caso deixou de servir como arma eleitoral e passou a ser tratado com silêncio ou indiferença por parte dos mesmos que antes o tratavam como prioridade nacional, diz Anne Dias.
Sem poder bradar “Quem matou Marielle?”, o campo progressista ficou carente de um novo grito de guerra. No entanto, o indiciamento de Bolsonaro no inquérito sobre a suposta tentativa de golpe após a eleição de 2022 preencheu essa lacuna — e o lema da vez passou a ser “Sem anistia”.
“O foco agora é ‘Sem anistia’ porque mobiliza a base, protege o alinhamento com o STF e silencia opositores”, afirma Anne. “O discurso muda, mas o critério segue o mesmo: o que importa não é a causa, é o uso político que se pode fazer dela.”
Fonte: Por Omar Godoy
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